Quando recebi o convite para falar sobre o projeto de catalogação dos baobás de Brasília no Festival Cultural do Brasil em Viena, capital austríaca, em setembro deste ano, além de muito feliz, me senti em dúvida sobre como seria uma abordagem dessa natureza em terras europeias. É que os baobás foram dispersos pelo mundo exatamente em razão da diáspora forçada pelo processo de escravização negra, esse empreendimento capitalista que transformou gente preta em commodity e tentou, sem sucesso, ceifar raízes e identidades com base em falsas teses científicas, convenientes interpretações religiosas e perspectivas culturais hegemônicas. É nessa tríade que o racismo se sustenta inicialmente para, séculos depois, marcar as sociedades de modo transversal, permeando a vida cotidiana, as relações de trabalho, a liberdade e o acesso a direitos.
Foi na Áustria — antigo Império Austro-Húngaro, uma das nações participantes da Conferência de Berlim, série de reuniões realizadas entre 1884 e 1885, sem participação de nenhum país africano, com o objetivo de traçar os destinos do Continente Berço — que eu falei sobre os baobás de Brasília. A conferência foi uma pantomima neocolonialista que reivindicou o papel de "civilizar" a África colocando-lhe fim às experiências escravistas.
Fazendo a travessia atlântica foi que eu, de fato, decidi como seria minha fala. Antes, porém, eu comparei minha passagem pelo oceano com aquelas feitas pelos navios escravagistas. Foram 12 horas de avião contra 45 dias daquelas embarcações. Eu fui sentado à janela no trecho São Paulo-Amsterdã, enquanto eles, durante quase 400 anos, vieram nos porões sem saber para onde iam. Mas sabiam o que levavam, mesmo que de forma escondida. Foi assim, naqueles navios, que as sementes de baobá cruzaram o Atlântico. Agora, nessa volta, fui levando na minha bagagem afetiva a decisão de que falaria sobre resistência e ancestralidade, que são os grandes sentidos daquelas sementes. É óbvio que falei que os baobás são árvores colossais, sagradas, longevas, referências espaciais, reservatórios de água potável, fontes de alimento e de remédio. Mas decidi falar, para os europeus, de uma ideia que se tentou impedir inutilmente.
E, assim, fui dando meu recado. O projeto que escravizou a população negra e a espalhou por tantos lugares do mundo não explica qual é a real contribuição desse povo para as sociedades do mundo. O projeto de escravização que acorrentou, mutilou e estuprou corpos com anuência da Justiça, da Igreja e da sociedade em geral foi, sim, bem-sucedido durante séculos. Entretanto, o mesmo projeto de escravização que buscou anular identidades, cercear religiosidades e cortar raízes ancestrais fracassou enormemente. E os baobás pelo mundo são prova disso.
No caso do Brasil, os baobás centenários estão justamente em áreas que outrora foram palco das primeiras experiências escravagistas no nosso país, como é o caso das antigas fazendas de engenho de cana-de-açúcar em Pernambuco, no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro, que veio a sediar os domínios portugueses na América. Aquelas sementes não cruzaram os oceanos para servirem a uma subsistência imediata, pois levam tempo para se tornarem árvores robustas que, por seu turno, levam mais tempo ainda para ofertarem seus frutos comestíveis. Elas vieram pelo conjunto de significações que guardam para os povos tradicionais africanos.
Sabem por que mais o projeto de escravização fracassou? Toda vez que vou a uma escola ou que escolas vão comigo visitar os baobás para, no seu entorno, termos uma conversa, a ideia que me levou para a Áustria se renova. São conversas sobre os baobás (embondeiros, imbondeiros, calabaceiras, micondós, mbondos e tantas outras denominações que a árvore tem em toda a África) transformados no conceito de "árvore da vida", "da palavra", "da memória"; são os baobás cultuados como divindades por algumas das religiões de matriz africana. É por isso que o projeto de escravização fracassou. Não se prendem e não se cortam religiosidade, identidade e memória. Tudo isso a diáspora espalhou. E tudo isso não morre. Como não morrem os imorredouros baobás.
* André Lúcio Bento é professor, escritor e especialista em cultura afro-brasileira
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