Economia

Análise: O parcelamento sem juros deve ser restringido?

Sem alternativa, consumidores seriam levados a assumir parcelas mais salgadas. Parcelas menos numerosas e mais caras dariam impulso à inadimplência

opiniao 2212 -  (crédito: Caio Gomez)
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Bruno Meyerhof Salama e Osny da Silva Filho - Opinião
postado em 22/12/2023 06:04

O Banco Central cogita limitar o número de parcelas admitidas no parcelamento sem juros do cartão de crédito. Esse número seria inicialmente reduzido a 12. O parcelamento sem juros no cartão é uma modalidade de venda a prazo que viabiliza o recebimento pelo lojista da integralidade do preço parcelado no cartão de crédito, com os devidos descontos, após 30 dias da compra, sem acréscimo ao consumidor. Aproximadamente metade das compras hoje feitas no país é parcelada assim.

A ideia de restringir o parcelamento sem juros não vem nem dos lojistas nem dos seus clientes, mas dos bancos que emitem os cartões de crédito. A Febraban, sua porta-voz, afirma que o parcelamento sem juros acarreta aumento da inadimplência. Sua proposta é restringir o número de parcelas para reduzir os níveis de inadimplência.

Essa proposta tem uma série de defeitos. O primeiro é apresentar o número de parcelas como fator de permanência no mercado, mas omitir que o parcelamento sem juros funciona, antes de tudo, como fator de acesso ao mercado. Menos parcelas tornaria a compra de bens essenciais, como geladeira e fogão, impossível para boa parte da população.

Nesse cenário, quem não fosse empurrado para fora do mercado passaria a financiar suas compras em condições mais duras. Sem alternativa, consumidores seriam levados a assumir parcelas mais salgadas. Parcelas menos numerosas e mais caras dariam impulso à inadimplência. E essa restrição também prejudicaria lojistas, que teriam que pagar mais caro para antecipar seus recebíveis.

Na melhor das hipóteses, a restrição do parcelamento sem juros incentivaria soluções menos eficientes. Nesse ponto, vale lembrar que vendas a prazo sem juros não surgiram com os cartões de crédito. Elas já eram realizadas por meio de contratos escritos ou da adaptação de instrumentos concebidos para outras finalidades, a exemplo dos cheques pré-datados. Não faz sentido incentivar o retorno dessas práticas. Para além das inconveniências econômicas, a restrição do parcelamento sem juros pelo Banco Central envolveria uma série de ilegalidades.

A primeira delas é a caracterização de prática colusiva. Bancos emissores não podem combinar preços nem pressionar o Banco Central para obter regras que prejudiquem seus competidores. É exatamente o que os bancos emissores têm feito ao advogar pela restrição impositiva do parcelamento sem juros. Trata-se, no jargão do direito antitruste, de tentativa de obter vantagem competitiva ilícita.

Há quem sustente que não seja o caso. A leitura alternativa sugere que a restrição do parcelamento sem juros se justificaria como medida prudencial. Ou seja, medida voltada a preservar a liquidez e a solvência dos negócios dos emissores de cartões. Mas essa ideia não é plausível. Os emissores já podem restringir a liberdade de parcelar por conta própria. Não o fazem pela pressão competitiva que, agora, desejam arrefecer.

Eventual restrição do parcelamento sem juros pelo Banco Central também colidiria com as melhores práticas regulatórias internacionais e suas respectivas orientações, sintetizadas nos Core Principles do Comitê da Basiléia — que, diga-se de passagem, o Banco Central vem, ao longo dos anos, buscando implementar. Isso porque essas orientações privilegiam a liberdade da instituição financeira na decisão de assumir ou não riscos de crédito, atribuindo ao regulador a incumbência de certificar-se de que as estruturas de gerenciamento de riscos adotadas pelas instituições financeiras são condizentes com os riscos assumidos. Esse é, afinal, o sentido próprio da ideia de regulação prudencial.

Vale notar que a celeuma sequer teria surgido se a Lei do Desenrola fosse observada. Lá, há um comando claro: os emissores devem propor limites para os juros no crédito rotativo dos cartões. Note bem: para os juros no crédito rotativo. Não para o número de parcelas. Em vez de afinar sua viola, os emissores querem desafinar a orquestra.

Tudo considerado, e para a sorte do consumidor, a proposta não pode ir adiante por uma razão mais simples, porém decisiva: o Banco Central não tem competência legal para restringir o parcelamento sem juros. A legislação é clara. A Lei do Processo Administrativo Federal não permite que o BC edite normas inaptas a alcançar as finalidades desejadas. A Lei do Sistema de Pagamentos Brasileiro, por sua vez, proíbe o regulador de emitir normas que restrinjam a competição e a inclusão financeira no mercado de pagamentos. E essa mesma lei não o autoriza a disciplinar as condições comerciais estabelecidas entre consumidores e lojistas.

Os índices de inadimplência do rotativo do cartão de crédito são um problema real. Há, no entanto, soluções mais justas, eficientes e sobretudo consistentes com as leis e a Constituição que a restrição impositiva da liberdade de parcelar pelo Banco Central. Uma delas é o incremento da competição no refinanciamento das dívidas de cartão de crédito, hoje monopolizado pelos bancos emissores.

 * Bruno Meyerhof Salama é professor adjunto na UC Berkeley Law School e senior global Fellow na FGV Direito SP

* Osny da Silva Filho é professor da FGV Direito SP e pesquisador visitante na Faculdade de Direito de Harvard e no Instituto Max Planck de Hamburgo

 

 

 

 

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