Um momento de alegria e esperança se transforma numa experiência de medo e sofrimento. A atenção é substituída pelo desrespeito. A autonomia, pelo descaso. Precisamos falar mais sobre a violência obstétrica, que viola a integridade física e psíquica da mulher.
Esse tipo de violência acontece durante o período gestacional, quando a equipe médica adota intervenções e procedimentos desnecessários ou sem evidências científicas. Manifesta-se também por meio de violência verbal, física ou sexual, configurando um desrespeito à mulher, a sua autonomia, seu corpo e seus processos reprodutivos.
O principal objetivo da atenção obstétrica e neonatal é acolher a mulher desde o início da gravidez, assegurando uma gestação tranquila e o nascimento de uma criança saudável. A atenção humanizada, com qualidade, depende da provisão dos recursos necessários e da organização de rotinas com procedimentos comprovadamente benéficos, evitando-se intervenções desnecessárias. Nesse processo, é essencial o estabelecimento de relações baseadas em princípios éticos, que garantam a privacidade e a autonomia da mulher, compartilhando com ela e sua família as decisões sobre as condutas a serem adotadas.
A ausência de legislação nacional, que defina a violência obstétrica e estabeleça eventuais punições, contribui para que o assunto encontre resistência inclusive no âmbito da jurisprudência, equiparando-o ao erro médico. A diferença é que a violência obstétrica abrange condutas de apropriação do corpo das mulheres gestantes, parturientes e em puerpério, sem respeito às suas escolhas, vontades e decisões. Utiliza-se da posição de vantagem e conhecimento técnico para preterir aquela que se encontra em situação de vulnerabilidade, justamente porque necessita de cuidados especiais.
Sob o manto da tecnicidade, são institucionalizadas condutas antiéticas, em detrimento do interesse daquela que necessita se sentir segura, confortável e ciente de todo o processo em curso.
No âmbito internacional, especialmente a partir de 1994, durante a Conferência do Cairo, restou formalmente estabelecido que "o progresso na igualdade e equidade dos sexos, a emancipação da mulher, a eliminação de toda espécie de violência contra ela e a garantia de poder ela própria controlar sua fecundidade são pedras fundamentais de programas relacionados com população e desenvolvimento".
Em declaração emitida em 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS), reconheceu que "Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente". E no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, a Convenção de Belém do Pará, promulgada pelo Decreto no 1.973/96, fixou que toda mulher "tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada, afirmando-se direitos a que se respeite sua integridade física, mental e moral".
Um Comitê criado durante a CEDAW — Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher — recomenda que o Estado brasileiro assegure que os serviços privados de saúde sigam padrões nacionais e internacionais sobre saúde reprodutiva, impondo sanções aos profissionais de saúde que violem os direitos reprodutivos das mulheres.
Todavia, a par de tais disposições, ainda é longa a trajetória pelo reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, assim como por sua autonomia para dispor sobre os próprios corpos, livres de toda forma de violência ou discriminação. Relatos sobre abusos durante o parto, humilhações, ou mesmo procedimentos médicos coercivos e não consentidos — tal como a esterilização — ainda são reportados continuamente por mulheres no Brasil e no mundo.
De acordo com a OMS (2014), mulheres solteiras, de baixo nível socioeconômico, de minorias étnicas, migrantes e as que vivem com HIV são particularmente propensas a experimentar abusos, desrespeito e maus-tratos.
No Brasil, estudo divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) intitulado A cor da dor, da pesquisadora Maria do Carmo Leal, indica que as mulheres pretas têm maior risco de sofrerem algum tipo de violência no período gestacional. Segundo os respectivos dados, essas mulheres, pretas, possuem maior risco de terem um pré-natal inadequado, falta de vinculação à maternidade, assim como maior possibilidade de passar pelo parto sozinha e peregrinar em busca de leito, sofrendo com o menor acesso à anestesia e maior ocorrência de episiotomia.
Ao assegurar o direito à maternidade saudável e o acesso de todas as mulheres a serviços adequados de emergência obstétrica, damos um passo importante em nossa luta contra a violência de gênero. Sigamos em frente.
* Jaceguara Dantas da Silva é desembargadora no TJ/MS e cofundadora do Grupo de Trabalhos e Estudos Zumbi (TEZ)
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