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Obesidade

Artigo: Falta de drogas para obesidade é sintoma de grande desconforto

Pessoas que estão ficando sem tratamento com essas drogas para o diabetes ou a obesidade apresentaram piora clínica

Maurenilson Freire -  (crédito: PRI-1712-OPINI)
Maurenilson Freire - (crédito: PRI-1712-OPINI)
postado em 17/12/2023 06:00

A nova geração de medicamentos para a obesidade, análogos de hormônios intestinais, está superando a referência de perda de peso de 10%. A semaglutida é o primeiro a obter aprovação regulatória para tratar a obesidade, sendo a tirzepatida e outros ainda em desenvolvimento mais promissores. Esse progresso levou a uma conscientização sem precedentes da utilização desses medicamentos, gerando uma escassez global. Talvez, essa demanda pudesse ter sido antecipada e suprida, mas, provavelmente, se resolverá e, com o tempo, esse período desaparecerá da memória. A oportunidade é de aprender com o que ela revelou.

Embora essas drogas claramente beneficiem as pessoas que podem obtê-las, o acesso precário prejudica outros. A escassez de semaglutida teve efeitos sobre a disponibilidade de outros análogos hormonais. Pessoas que estão ficando sem tratamento com essas drogas para o diabetes ou a obesidade apresentaram piora clínica. Os que se beneficiariam do tratamento não foram capazes de iniciá-lo. A ausência de informações confiáveis sobre o prazo e solução da escassez leva a dificuldades no planejamento do tratamento.

Essa situação tem revelado vieses contra o tratamento da obesidade. Na União Europeia, no Reino Unido, nos Estados Unidos, na Austrália e na América do Sul, as autoridades reguladoras e fontes pagadoras pediram aos prescritores que usassem semaglutida apenas para portadores de diabetes tipo 2. Isso implica que, independentemente de sua gravidade, complicações ou efeito sobre o indivíduo, a obesidade é menos digna de tratamento do que o diabetes, negando o reconhecimento da obesidade como uma doença.

O advento desses novos medicamentos amplificou a crença de que a obesidade deve ser prevenida e não tratada. Quão absurdo seria propor não tratar o câncer ou as doenças cardiovasculares porque essas doenças deveriam ser apenas prevenidas? A prevenção primária é crucial, mas nenhuma estratégia em nível populacional reduziu a prevalência da obesidade em qualquer país e, para as mais de 700 milhões de pessoas já afetadas no mundo, a oportunidade de prevenção passou. O impacto da obesidade na morbidade, na mortalidade, na qualidade de vida e nos custos com saúde é imenso, não podemos nos dar ao luxo de não tratá-la de uma perspectiva sanitária, econômica ou ética.

A visão de que as drogas são uma opção fácil pressupõe que as mudanças no estilo de vida, por si só, são suficientes para manter a perda de peso e seus ganhos de saúde associados, mas evidências mostram que essa não é a realidade para a maioria das pessoas com obesidade. Esperar que os indivíduos mantenham mudanças de comportamento na ausência de tratamentos para lidar com ambientes obesogênicos e outros fatores é irreal.

Especula-se que novos medicamentos significarão o fim da cirurgia bariátrica. Fazendo paralelo com outras doenças crônicas, devemos saber que várias opções de tratamento são necessárias. Nenhum tratamento único funciona bem para todos os pacientes. Embora para alguns a cirurgia não será mais indicada, porque seus objetivos de tratamento foram alcançados com medicamentos, algumas pessoas não responderão ao tratamento ou não tolerarão efeitos colaterais, e outras podem precisar de medicamentos e cirurgia. Esses desfechos ainda não podem ser antecipados com precisão, mas esforços para previsão de trajetórias de peso estão em andamento, e estudos para examinar os resultados da combinação dos medicamentos com outras opções de tratamento serão importantes.

Inicialmente, o custo é a barreira mais crítica para o acesso aos novos medicamentos. Embora tenham aprovação regulatória para o tratamento da obesidade, o custo é inviável para os sistemas públicos e privados. Via de regra, esses medicamentos são pagos pelo próprio indivíduo, de modo que seu alto custo e maior dose para o tratamento da obesidade do que para o diabetes agravam disparidade, dada a carga desproporcional da obesidade entre pessoas com status socioeconômico mais baixo e pessoas de grupos raciais ou étnicos minoritários. Esforços combinados de farmacêuticas, reguladores, pagadores, prescritores e pacientes serão importantes para encontrar maneiras sustentáveis de superar as desigualdades de acesso para as pessoas com maior necessidade.

As questões de custo devem ser temporárias. À medida que mais empresas e medicamentos entram no mercado, perdas de patente e inovações tecnológicas afetarão os custos de produção e preço final. A forma como lidamos com a obesidade em nossos sistemas de saúde dependerá da disposição de enfrentar preconceitos e questionar a razão de mantermos o tratamento da obesidade em um padrão diferente de outras doenças crônicas. Não se descartam os benefícios dos anti-hipertensivos, estatinas ou agentes redutores de glicose, porque seus efeitos não persistem após a interrupção da medicação. Isso é reconhecido como óbvio no manejo de doenças crônicas.

Somente quando os preconceitos que a atual escassez de medicamentos evidenciou, esses avanços imprecedentes para o tratamento da obesidade serão apreciados.

*Ricardo Cohen, presidente mundial do International Federation for the Surgery of Obesity and Metabolic Disorders (IFSO) e coordenador do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz

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