Semana passada, a escritora Conceição Evaristo concedeu uma entrevista ao Correio Braziliense, e o repórter felizardo responsável pela pauta fui eu. Foi um privilégio ao mesmo tempo em que tive que, rapidamente, mergulhar na obra da mineira para poder cumprir a missão com sucesso. Decidi ler o romance memorialista Becos da memória, no qual Conceição entrelaça diferentes histórias de moradores de uma comunidade que passa pelo processo de remoção em nome do progresso.
Falha minha nunca ter lido algo de Evaristo, não só pela importância de consumir literatura feita por uma mulher negra, mas pelo trabalho fundamental de trazer a versão de parte da história do Brasil contada pelos vencidos. São muitas as considerações a serem feitas após a leitura de Becos da memória e a conversa com a autora.
A primeira é a coragem fundamental (ou, talvez, a necessidade) de pôr o dedo na ferida. Mas não se trata apenas da chaga deixada na alma do povo negro após séculos de racismo hediondo, que baseou a construção deste país. Trata-se, também, de pôr o dedo na ferida "dos do lado de lá", como escreve em seu romance.
Ainda há uma resistência enorme, por parte da classe dominante, em pensar de maneira crítica nas relações raciais brasileiras. Mas isso não é uma surpresa. É um incômodo questionar os próprios privilégios, a relação com a empregada doméstica (ela é como se fosse da família, certo?), aquilo que você considera belo e/ou digno de admiração ou o poder da palavra que é conferido apenas a uma parcela específica (branca) da sociedade.
Mas Conceição não deixa barato. "Hoje, pessoas brancas também estão discutindo e propondo ações contra o racismo. Não fazem mais do que a obrigação. A busca pela solução do racismo brasileiro não é uma tarefa somente de nós, negros, até porque não fomos nós que criamos o racismo", avisa a doutora em literatura comparada pelo Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ser negro e obter a famosa consciência racial é muito duro. Enlouquecedor, em alguns momentos. No entanto, todo esse trabalho dolorido nada vai valer se os brancos não caírem na real. E não é um favor que nos fazem, como Conceição acertadamente falou. É o único caminho para uma sociedade mais harmoniosa, na qual todos vão se beneficiar. A desigualdade absurda, que faz parte do DNA nacional, é fundamentada basicamente pelo racismo inventado pelo branco europeu, que teve que criar uma desculpa para justificar a carnificina de populações não brancas que promovia mundo afora. Foi um holocausto global, por mais que não gere tanta comoção quanto aquele que ceifou a vida de milhões de judeus em meados do século passado.
Mas, voltando para Conceição, o sentimento que fica é o de urgência em contar as nossas histórias, de tomar para nós o direito de questionar a vilania da opressão e de preservar os direitos à vida e à memória. Eu, por sorte do meu ofício, tenho um certo poder da palavra. Estou do lado de Conceição.
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