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Diversidade

Djalma do Alegrete: Uma tela esmaecida pelo apagamento histórico

Autodenominava-se "O mensageiro artístico de Oxalá", retratando, em suas telas, aspectos da cultura afro-brasileira e afro-gaúcha, dando ênfase à religiosidade em todo o seu simbolismo

PRI-0912-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-0912-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)
postado em 09/12/2023 06:05 / atualizado em 10/12/2023 12:28

A academia ainda é defendida como uma instituição que propaga a transmissão de um ensino rígido e tradicional, onde a verdade absoluta provém das práticas impostas pelo eurocentrismo. No campo das artes plásticas, o elitismo ordena que os artistas europeus com obras expostas permanentemente em museus como Louvre ou d'Orsay sejam os únicos objetos de pesquisa quando o estudo sobre a história da arte está em prática. Tais fatos nos fazem refletir sobre a visão preconceituosa, que erronea e insistentemente tentam cercear quaisquer outras manifestações das artes visuais que não sejam a vertente clássica, descredenciando as demais que não têm a validação acadêmica.

Obras de arte produzidas pelos povos originários são entregues ao descaso, tratadas, muitas vezes, como objetos exóticos, estando distante do conceito ideal ditado pela aristocracia. As artes negras e as indígenas estão espalhadas pela Europa, etiquetadas como presentes ofertados às majestades após serem saqueadas, tendo sua procedência encoberta. Quando na Academia surge uma indagação sobre a presença das artes africanas na formação da história, respostas rasas e infundadas tentam calar a voz de quem é provocado pela inquietude da justiça e do saber, instigando tantos outros questionamentos que descortinam cenários reais e, por vezes, nem tão prazerosos.

No Brasil, os artistas negros, que, na sua grande maioria, não recebem o devido reconhecimento, sofrem com o apagamento histórico, estando sujeitos ao esquecimento dos docentes e do mercado da arte, ação inadequada que faz desbotar as cores e as formas de seus repertórios. É justamente esse apagamento histórico que oculta o nome de Djalma do Alegrete dos livros de história, barrando relevante contribuição ao catálogo da arte afro-brasileira, na qual seu talento incontestável deveria ser elevado ao mais alto patamar.

Registrado como Djalma Cunha dos Santos, adotou o nome de sua cidade natal como assinatura artística, tornando-se a identidade do artista multifacetado que, em 1957, figurou como pioneiro, por ser o primeiro homem negro a colar grau no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no curso de artes plásticas, onde, anos mais tarde, tornou-se professor. Exímio desenhista, destacou-se por produzir retratos fidedignos aos traços de seus modelos, assinando a representação de figuras proeminentes da elite gaúcha.

Autodenominava-se "O mensageiro artístico de Oxalá", retratando, em suas telas, aspectos da cultura afro-brasileira e afro-gaúcha, dando ênfase à religiosidade em todo o seu simbolismo, expressando, em sua poética, os orixás e as cenas compostas nos terreiros. Dominando as técnicas de pintura, Djalma assinou ilustrações em muitos livros que espelhavam o cotidiano da comunidade negra, confirmando sua autoridade como expoente da cultura que o constituía, por meio de seus traços inconfundíveis.

Como figurinista, atuou nos carnavais de Porto Alegre e do Rio de Janeiro, tornando-se referência por conquistar campeonatos e condecorações, ganhando notoriedade internacional ao criar o traje típico intitulado Exaltação aos Pampas, apresentado por Ieda Maria Vargas no concurso Miss Universo em 1963, no qual a gaúcha conquistou o título. Mas esse capítulo tem final nada feliz, dada a ingratidão e o preconceito. Injustamente criticado pelos Centros de Tradições Gaúchas — contrariados pela ousada proposição de compor um figurino em que a costumeira saia da prenda fora substituída pelo chiripá, peça usada pelos rígidos peões —, Djalma do Alegrete foi barrado na recepção ao Miss Universo, realizado pelo governo gaúcho. O figurinista da TV Piratini faltou a um dia de trabalho, para comparecer à tal festividade, sendo severamente punido com sua demissão. Pergunto-lhes: Caso fosse um homem branco, isso teria acontecido?

Djalma era um homem negro e assumidamente homossexual, transgredindo as normativas comportamentais da época. Sofreu duras penas pelas rejeições e exclusões, mesmo apresentando-se como um profissional gabaritado, negaram-lhe o espaço por ele conquistado. O racismo estrutural é impiedoso e não poupa de seus dolorosos golpes aqueles que estão sob a sua mira. Assim aconteceu com Djalma do Alegrete, pessoa à frente de seu tempo que denunciou o racismo e exaltou a beleza de seu povo na mesma proporção, impactando a cena artística no Brasil, mas, principalmente, em seu estado. Djalma do Alegrete é tela esmaecida pelo apagamento histórico, mas cuja arte segue reverberando nos questionamentos daqueles que ainda o escutam e defendem seu legado.

 * Luiz Augusto Quadros Lacerda é artista plástico, carnavalesco, figurinista, pesquisador das tradições afro-brasileiras de Porto Alegre

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