Pensar e avaliar os acontecimentos dos últimos seis anos abrange saber que fomos devastados e golpeados juntamente com outros setores da população brasileira, cientes de que muitas atitudes e maneiras de discriminar foram institucionalizadas. Práticas de racismo, machismo e homofobia se fortaleceram nesse período, que pareceu curto, mas se perpetua na cabeça de parte da população não negra que se julga superior — mentalidade que persiste desde a colonização com forte cunho ideológico e religioso e, hoje, podemos relacioná-la ao fascismo.
Temos também que relembrar que estamos em pleno encerramento da Década Internacional de Afrodescendentes, proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) para o período entre 2015 e 2024, e, mesmo assim, os afrodescendentes brasileiros foram novamente espoliados nesse período. Foram seis anos de recuos e desmonte de políticas públicas para o povo negro em praticamente todos os setores da gestão federal. As atrocidades promovidas com dinheiro público para estruturar o racismo, assim como a expressão mais bárbara do fascismo, foram iniciadas manchando e destruindo símbolos importantes, considerados nossas primeiras vitórias institucionais.
Uma delas, criada a partir de demandas do movimento social negro, é a Fundação Palmares, que teve uma gestão polêmica. Também passou pelo desmonte a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Na mesma triste toada, desconsiderou-se políticas de equidade na saúde, menosprezando e não investindo em ações que valorizavam a população indígena e negra, e houve aumento de violência e violação de direitos de uma juventude majoritariamente negra.
Necessitamos recolocar esses temas, anteriormente em pauta, para refletirmos sobre o papel de gestores negros, cumprindo até mesmo o deles em equipes de governos como consultores e assessores técnicos, para desconstruir a determinação social. Precisamos construir melhores resultados na qualidade de vida dos sujeitos sociais, a partir das mudanças na situação dos determinantes sociais, combatendo as iniquidades na saúde, em outros setores e nas estruturas formuladoras de políticas públicas.
Sabemos que as políticas públicas têm que considerar o recorte étnico em todas as proposições de governo, levando em conta a participação social e as políticas específicas dos mais vulneráveis — destacando: a população negra; no contexto das populações do campo, da floresta e das águas; a população em situação de rua; os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa; a população residente em áreas de comunidades e favela; a população LGBTQIAPN ; povos e comunidades tradicionais; migrantes, refugiados e apátridas; e pessoas privadas de liberdade; além de ações relacionadas ao enfrentamento do tráfico de pessoas.
Assim, pensar na retomada é pensar em uma nova primavera, em que identificamos dois Brasis que, com todas as dificuldades, superam um período de descaso e desmonte de políticas do Estado em um momento pandêmico, de afloração do fascismo, racismo, homofobia, xenofobia, intolerância religiosa e de reafirmação de posições machistas. Algumas dessas linhas de pensamento e ação, inclusive, estavam reforçadas por discursos de representações institucionais, governamentais, e encontrando eco em setores de parte da população que reproduzia atitudes desumanas.
Logo, trazendo para o campo da saúde mental, qual a situação e como se encontram esses sujeitos sociais que sofreram esses descasos? Quem eram os que, nos períodos mais nefastos, foram escolhidos para executar o trabalho escravo, assim como foram mais desassistidos no período pandêmico?
Pensar o Brasil — e, dessa forma, contribuir para esse novo momento — é uma das ações mais ressignificantes: trabalharmos e somarmos na reconstrução das políticas públicas que realmente resultem na união de nossos povos, de negros, indígenas, LGBTQIAP , latino-americanos, migrantes e refugiados. Esse esforço de união e respeito é construir um Brasil de todas, todos e todes, onde possamos nos dar as mãos sob uma nova visão de como se levar a vida, considerando o bem viver, respeitando o meio ambiente, o direito à vida dos povos originários e o desenvolvimento sustentável. Um país com mais médicos, qualidade de vida e saúde, em que possamos nos amar com nossas diferenças.
Nossas vidas serão salvas por nós mesmos, falamos, junto com o rapper Emicida, que é "nada sobre nós, sem nós". Assim, que a realidade de cada sujeito, individual ou coletiva, se dê na participação social, protagonizando coletivamente este momento de reconstruir e unir o Brasil.
JORGE SENNA, gestor hospitalar, militante do movimento social negro e integrante da Escola de Promotores Populares em Saúde
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