Estamos momentaneamente aliviados com a diminuição das temperaturas que as chuvas recentes trouxeram. Comemoramos isso porque temos memórias nada frescas acerca do período de intenso calor que antecedeu essas chuvas, com recordes de temperaturas em diferentes regiões do Centro-Oeste. Sentimos isso sem necessariamente fazer grandes reflexões sobre a escala e a complexidade do que envolve esse "calorão".
O que nem todos têm completa ciência é que as chuvas na região do Cerrado estão atrasando mais de 56 dias em média. Essa chuva que veio no fim de novembro vinha, habitualmente, em setembro. A temperatura de semanas atrás é cerca de 2ºC acima da média, e o registro médio no nosso bioma aumentou em 1ºC. Esses fatos dialogam com as tão faladas mudanças climáticas, que, como podemos sentir, estão fortemente materializadas no nosso dia a dia.
Esses elementos dialogam com outras notícias. Você deve ter na memória recente a grande seca de rios amazônicos (Negro, Solimões, Purus e Madeira) no mês passado, que ainda perdura. Trata-se de uma situação grave e nunca antes registrada com tal intensidade. Esse fato se relaciona com o aquecimento das águas do Pacífico Sul, o El Niño, e também com o aquecimento das águas do Atlântico — ambos fenômenos intensificados pelas mudanças climáticas, provocadas por ações humanas que geram a emissão de gases do efeito estufa.
Agora, em dezembro, acontecerá em Dubai, nos Emirados Árabes, a Conferência das Partes Sobre Mudanças Climáticas (COP28), onde líderes mundiais vão debater alternativas e encaminhamentos para enfrentar esses desafios — como os que você sentiu na pele nos últimos dias. Um momento muito oportuno para refletirmos sobre a conexão entre a realidade e as políticas públicas.
Como noticiado pelos veículos da imprensa, o desmatamento na Amazônia vem caindo desde a implementação do Plano de Combate ao Desmatamento da Amazônia (PPCDAm). Em contrapartida, o desmatamento do Cerrado vem aumentando. Já se vão cinco anos de aumento, e, no último mês, o número foi de 149% a mais, em comparação a outubro de 2022. Em breve, o governo federal lançará o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado (PPCerrado), e, com ele, a responsabilidade de reverter essa trágica tendência.
A pertinência da reflexão brota do fato que os ecossistemas interagem entre si e não respeitam limites de políticas públicas, como é o caso do binômio Cerrado-Amazônia. A chuva que cai no Cerrado, que caiu em Brasília e nos refrescou recentemente, é a umidade da Amazônia que viajou pelos chamados rios voadores. Esse fenômeno, por sua vez, depende de uma série de aspectos — entre eles, a preservação da Amazônia, para que ela possa evapotranspirar e essa umidade seja levada, via Massa Equatorial Continental (mEc), para a região do Centro-Oeste e para o Cerrado brasileiro.
Essa é uma relação, no mínimo, de mão dupla, pois mais de 3.427 nascentes do Cerrado drenam para dentro do bioma amazônico. Além disso, o Cerrado hidrata cerca de 40% da população brasileira, distribuindo água especialmente pelas bacias do Paraná, Tocantins e São Francisco, entre outras. Portanto, o que acontece na Amazônia implica no Cerrado, e o que ocorre no Cerrado implica na Amazônia: são biomas irmãos. Não há o que se falar na proteção da Amazônia sem se falar na proteção do Cerrado, e vice-versa: são como a perna esquerda e direita de um mesmo corpo.
No entanto, as mídias nacional e internacional têm dado espaço para a divulgação das questões amazônicas como se a Amazônia fosse uma ilha. Porém, os fenômenos e ciclos naturais, tais como as mudanças climáticas e o ciclo hidrológico, contrariam essa narrativa e nos obrigam a olhar para a realidade como ela é. O Cerrado e a Amazônia estão conectados pela água e pelas pessoas que vivem e trabalham conservando a maior biodiversidade do planeta.
Esperamos que essa mensagem chegue aos tomadores de decisão da COP28, em especial do governo brasileiro, para que incorporem o Cerrado nas políticas públicas em uma escala de ambição proporcional à importância do bioma. Sem o Cerrado, não ficam de pé nem a Amazônia nem o Brasil.
* Yuri Salmona é doutor em ciências florestais e diretor do Instituto Cerrados