Gaia em ebulição

O rapto de Helena desencadeou uma das mais sangrentas batalhas da mitologia. A verdade por trás da guerra de Troia, porém, é que o sequestro da mulher de Menelau apenas serviu de desculpa para reduzir a população da Terra. Gaia, a entidade gestadora dos primeiros habitantes do Olimpo, achava que havia gente demais em seus domínios. Pediu, então, ao neto Zeus que eliminasse uma boa quantidade de homens. Ele obedeceu, arquitetando uma intriga que resultaria em 10 anos de morticínio.

Agora, é o homem quem usa Gaia para, aparentemente, alcançar a autodestruição. As constantes agressões ao planeta, com desflorestamento ostensivo e emissões recorde de gases de efeito estufa, transformam a Terra em um lugar inóspito. Só de calor, 70 mil pessoas morreram no ano passado. E isso apenas na Europa, diz um estudo publicado na Nature Medicine. Até 2050 — menos de três décadas —, o número de vítimas das temperaturas extremas quintuplicará, prevê outra pesquisa, na The Lancet.

A hecatombe, profetizada por modelos matemáticos que consideram os padrões atuais de CO², sequer inclui baixas por outros efeitos das mudanças climáticas. Também estão previstos o aumento do nível do mar, que poderá engolir ilhas e cidades costeiras; a insegurança alimentar provocada por perdas na agricultura; as guerras por recursos naturais, como a água doce.

Os extremos climáticos de 2023 são uma amostra do que há por vir, caso tomadores de decisões continuem a adiar as metas do Acordo de Paris. Em todos os meses, bateram-se recordes de calor, sendo julho o mais quente em 120 mil anos, segundo o Serviço Meteorológico Europeu. De fato, o El Niño colaborou para aumentar a temperatura. Porém, o fenômeno já ocorreu tantas outras vezes sem transformar a Terra no que o diretor-geral da ONU, António Guterres, classificou de "planeta em ebulição".

De 30 de novembro a 12 de dezembro, líderes mundiais têm a possibilidade de evitar um colapso da Terra como se conhece, durante a Conferência das Partes de Dubai (COP 28). Celebrado há 15 anos, o Acordo de Paris tinha como objetivo limitar o aquecimento preferencialmente a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais até o fim do século. Desde 2009, houve progressos, especialmente na adoção de energia limpa. Os avanços, porém, foram insuficientes para garantir a segurança climática.

Os relatórios mais recentes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU apontam ações urgentes que, na palavra dos cientistas responsáveis por elaborá-los, podem garantir um "futuro habitável". Esses documentos servem de subsídio para a declaração final da COP, mas costumam ser esquecidos nas mesas de discussão, quando interesses econômicos se sobrepõem. O mundo observa atentamente como, no ano mais quente em milênios, seus líderes atuarão em uma conferência sediada por um dos maiores produtores de petróleo.

Em 4,5 bilhões de anos, a Terra foi muitos planetas diferentes. Surgiu como uma bola de fogo, emitiu vapores tóxicos, resfriou e, por milhares de anos, choveu tanto que os oceanos se formaram. Quando o Sol morrer, sob forma de anã-branca, a Terra permanecerá, reconfigurada. Já o mesmo não se pode dizer do homem — apenas um dos milhões de espécies que já passaram por aqui. Divina, Gaia não depende da COP 28. A frágil humanidade, sim.

 

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