A expressiva vitória de Javier Milei, que assumirá a Presidência da Argentina, a partir de 10 de dezembro, tem suscitado um amplo debate sobre sua capacidade de cumprir as ousadas promessas de campanha e a falta de experiência na administração pública. O tom inflamado de sua retórica também levanta dúvidas sobre como ele lidará com os complexos desafios econômicos e sociais que o país enfrenta. Os dados recentes revelam uma situação crítica na Argentina, com uma inflação acumulada de 120% em 2023 e uma dívida externa bruta de cerca de US$ 276 bilhões em 2022. Além disso, aproximadamente 40% da população do país vive abaixo da linha da pobreza.
Durante sua campanha, Milei prometeu reestruturar a economia, controlar a inflação e reduzir os gastos públicos. Nas primeiras horas após a sua vitória, expressou sua intenção de avançar com suas propostas, que incluem a privatização e a reforma do Estado, bem como medidas controversas, como a dolarização e a extinção do Banco Central. Entretanto, paira incerteza sobre o futuro, pois essas medidas enfrentarão resistência significativa no cenário político argentino.
Com um governo minoritário, o ultralibertário enfrenta o desafio de construir uma coalizão com outros partidos. Isso se torna particularmente complexo, uma vez que seu partido não elegeu governadores e elegeu apenas 37 deputados e oito senadores. Para garantir a governabilidade, uma aliança com o ex-presidente Mauricio Macri é vista como fundamental. No entanto, Milei também terá que lidar com críticas dos grupos que o apoiaram, enquanto Macri precisará convencer os setores moderados de sua coalizão da importância de se alinharem com um governo ultraliberal.
Além dos desafios internos, as relações exteriores ganharam destaque após a eleição de Milei. Sua escolha de visitar os Estados Unidos e Israel na primeira viagem ao exterior sinaliza um afastamento em relação ao Brasil, que, tradicionalmente, é o primeiro país visitado pelos presidentes argentinos. A divergência ideológica entre Milei e Lula levanta preocupações sobre o futuro das relações entre os dois governos. Essa dinâmica pode afetar diretamente os exportadores brasileiros que dependem das relações comerciais com a Argentina.
A ênfase do ultralibertário no livre comércio também pressiona por mudanças nas relações no âmbito do Mercosul, o que se opõe aos interesses brasileiros. Milei alternou suas posições durante a campanha, indo desde ser totalmente contrário ao Mercosul, sugerindo a saída da Argentina do bloco, até a proposta de modernizar e flexibilizar as regras para permitir que os países membros estabeleçam outros acordos comerciais.
No entanto, a flexibilização do Mercosul não se alinha com os interesses do Brasil, que vê o bloco como um instrumento de inserção diplomática da região no âmbito global, indo além das questões comerciais. A próxima presidência argentina poderá representar uma mudança significativa no modelo de integração regional adotado desde os anos de 1990, o que exigiria uma revisão dos princípios da política externa brasileira na América Latina.
A falta de cooperação dentro do Mercosul também pode impactar as negociações entre o bloco e a União Europeia, um acordo que está na fase final das negociações. Além disso, as tensões internacionais e a desaceleração econômica global tornam as perspectivas de crescimento do comércio internacional incertas, o que mantém o Mercosul relevante para a Argentina.
Durante a campanha, Milei não tratou do acordo Mercosul-União Europeia, mas ele terá que levar em consideração a posição dos setores internos da economia, como o agronegócio, que desempenha um papel crucial nas exportações argentinas e espera ampliar sua participação no comércio com os europeus.
Outra preocupação para o Brasil é que a vitória de Milei fortalece um eixo de extrema direita nas Américas, que se opõe ao governo de Lula e às políticas progressistas na região. Isso adiciona um desafio adicional à relação bilateral entre o Brasil e a Argentina, que terá que superar as diferenças ideológicas e garantir uma visão sobre a continuidade ou mudança na relação entre esses vizinhos tão próximos e importantes. Deve-se também considerar que a ligação do político ultralibertário com a família Bolsonaro gera preocupações no entorno do governo Lula e o quanto terá impacto na polarização existente no Brasil e nas eleições municipais de 2024.
A presidência de Milei inaugura uma nova fase da relação Brasil-Argentina que exigirá habilidade e pragmatismo da diplomacia brasileira. O caráter disruptivo das propostas do argentino demandará um grande esforço de contenção de danos por parte do governo Lula para preservar o futuro da relação bilateral. Conforme esses eventos se desenrolarem, devemos observar com atenção como essa nova dinâmica afetará não apenas o Brasil, mas também as relações regionais.
* Denilde Holzhacker é diretora de Pesquisa e Pós-graduação stricto sensu da ESPM