Reforma tributária

Artigo: Tributação e combate ao contrabando

O eventual aumento da já elevada carga tributária dos segmentos de tabaco ou de bebidas alcoólicas tem o potencial de aumentar ainda mais o mercado ilícito desses produtos

Atribui-se a Henry Louis Mencken a conhecida afirmação no sentido de que, "para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada". No complexo campo da tributação, essa afirmação se confirma com frequência.

Recentemente, o Senado aprovou a PEC 45/2019. Em razão das alterações promovidas, o texto vai passar por nova análise da Câmara dos Deputados. Um dos temas que têm gerado grandes discussões é a instituição do denominado Imposto Seletivo (IS), que recairá sobre a "produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente".

A efetiva operacionalização do IS dependerá de lei complementar posterior que detalhará quais os bens e os serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente serão objeto dessa tributação "seletiva". Mas já sabemos, de antemão, que os suspeitos de sempre, como bebidas alcoólicas ou cigarros estarão nesse rol.

Recentemente, foi divulgada pela ACT uma pesquisa que afirma que 94% dos brasileiros apoiam aumento de impostos para produtos nocivos à saúde, segundo o Datafolha. Acontece que a resposta estava embutida na pergunta. Ora, é da natureza humana desejar afastar qualquer ameaça à saúde.

Podemos escolher discutir a questão superficialmente, sem levar em conta sua complexidade e implicações, ou levantar um debate adulto a respeito dos possíveis impactos da elevação dos tributos. Neste espaço, sugiro a segunda alternativa.

A ideia de onerar esses produtos parte de uma crença de que o aumento da tributação servirá para inibir seu consumo. Esse raciocínio, compreensível e justificável no campo teórico, exige uma reflexão mais cuidadosa, especialmente em função da realidade brasileira e de elementos empíricos.

Tomemos como exemplo a indústria do tabaco, onde a atual carga tributária gira em torno de 80%. Em virtude dessa elevadíssima tributação, o mercado legal está perdendo, há anos, a batalha contra a sonegação fiscal e o contrabando: segundo relatório divulgado pela Receita Federal, o cigarro corresponde a 53% do volume total de bens apreendidos em 2022. A cada 10 cigarros vendidos no Brasil, seis são contrabandeados. As marcas oriundas do Paraguai são aqui tão conhecidas que, numa piada pronta, muitas vezes são alvo até de falsificação.

O preço é o principal propulsor da migração do consumo de produtos legais (controlados sob a perspectiva sanitária e tributados) para o mercado ilícito. Há fartas evidências de que, nesse setor, quando o preço do cigarro legal aumenta, o consumidor opta pelo consumo do contrabandeado, bem mais barato — justamente porque não é tributado.

Em 2020, deu-se uma fortuita retração do mercado ilícito decorrente da pandemia da covid-19 e da alta do dólar. O preço do cigarro ilegal ficou mais próximo dos produtos legais nacionais, fazendo com que parte dos consumidores dos produtos ilícitos migrasse para os produtos lícitos. A fatia do ilegal encolheu pela primeira vez em anos, de 57% em 2019 para 49% do mercado nacional em 2020, levando ao aumento de 10% na arrecadação de IPI sobre cigarros em 2020, um acréscimo de receita de R$ 500 milhões, considerando-se apenas o imposto federal.

Longe de desestimular o consumo, o eventual aumento da já elevada carga tributária dos segmentos de tabaco ou de bebidas alcoólicas, que figuram entre os setores mais pesadamente tributados no Brasil, tem o potencial de aumentar ainda mais o mercado ilícito desses produtos — com riscos não apenas para a saúde dos brasileiros, mas também para a arrecadação.

A intenção de aumentar a tributação de produtos que afetam a saúde é compreensível. Contudo, é preciso saber se a premissa que justifica essa tese se confirma. Se o consumidor, diante do aumento de preço, puder recorrer a um imenso mercado paralelo, todo o esforço terá sido em vão, não se verificando redução de consumo e, ao mesmo tempo, estimulando-se o crime.

* Luiz Gustavo Bichara é especialista em direito tributário

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