Meio ambiente

Artigo: O papa e o apocalipse climático

A preocupação dos intérpretes da Bíblia com o aquecimento do planeta, cujas as graves consequências começaram a ser sentidas, tem um tom de alarme coincidente com o que diz a ciência sobre o assunto

Em um gesto inédito, o papa vai à Conferência Internacional do Clima, a COP28, em Dubai, com intensa agenda de encontros com os líderes mundiais. A igreja está profundamente preocupada com o aquecimento global a ponto de o Vaticano fazer a sua própria conferência sobre as mudanças climáticas na Pontifícia Academia das Ciências. O secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, participou da cerimônia de assinatura de uma declaração inter-religiosa que conclama os líderes religiosos a mobilizarem as suas comunidades para enfrentar o problema. Para o cardeal, "é preciso focar em como enfrentar a crise climática agora".

A preocupação dos intérpretes da Bíblia com o aquecimento do planeta, cujas graves consequências começaram a ser sentidas, tem um tom de alarme coincidente com o que diz a ciência sobre o assunto: o efeito estufa exacerbado, resultante da emissão antropogênica de carbono, é uma ameaça real à sobrevivência na Terra. "O quarto Anjo derramou sua taça no sol. E o sol teve a permissão de queimar as pessoas com fogo. E elas ficaram queimadas com esse forte calor. Então, blasfemaram contra o nome do Deus que tem autoridade sobre essas pragas. Mas não se arrependeram para dar glória a Ele" (Apocalipse, 16:8).

O calor mortal é uma das características das mudanças climáticas mais óbvias, assim como os rios que secam ou os cursos de água que morrem no livro do Apocalipse, como também consta entre as sete taças do furor divino: "E vi algo como mar de vidro misturado com fogo" (...) "E o mar se tornou sangue, como o sangue de um morto. E morreram todos os seres vivos do mar" (...) "Houve então relâmpagos, vozes, trovões e fortes terremotos". Qualquer semelhança com o aquecimento dos oceanos que ameaça a vida marinha ou com as tempestades hiperbólicas atuais talvez não seja mera coincidência. O Vaticano toma todo o cuidado para não usar fora das suas paredes termos apocalípticos, mas a inquietação é mesmo grande.

O que se sabe agora é que o aquecimento global está ocorrendo mais rápido do que se imaginava. Se os cientistas erraram foi para menos. O limite de 1,5 °C já bate à porta. E as emissões de combustíveis fósseis são os maiores responsáveis por essa crise. O petróleo, o carvão e o gás natural são os grandes vilões de um enredo que conduz o mundo à destruição das civilizações. Mas os chamados biocombustíveis, e sobretudo o etanol, têm parte da culpa também porque já desmataram muito diretamente ou empurrando outras culturas e a pecuária para cima dos paraísos florestais virgens, com o mesmo cinismo que um dia tornou o gás natural uma mentirosa parte da transição energética.

Usineiros e donos do petróleo parecem querer dinheiro acima de tudo. Formam a nova Babilônia, a grande prostituta, que se corrompeu em comércio nefasto e despudorada ostentação de riqueza: "Estava toda enfeitada de ouro, pedras preciosas e pérolas" (...) "Os reis da terra se prostituíram com ela. Os habitantes da terra ficam embriagados com o vinho da sua prostituição" (Apocalipse 17:2). As inúmeras passagens do livro sagrado sobre a cidade tomada pela fumaça do incêndio babilônico nos fazem também perturbadoramente lembrar de Manaus ou Nova York, asfixiadas pelas matas em chamas do aquecimento global. Isso para não falar em Isaías (34:9), em mais uma profecia digamos, petrolífera: "Se transformarão em piche, o seu solo, em enxofre, e a sua terra ficará como betume ardente".

A ciência já disse tudo que precisava dizer. O que a ciência ainda não disse é que podemos ser como aqueles porcos possuídos que se jogam do penhasco, em outra alusão bíblica. Mesmo sabendo o que se passa, e qual será o nosso fim se não promovermos uma transição energética verdadeira e rápida, limpando o mundo dos combustíveis orgânicos, muitos ainda resistem às mudanças tão necessárias na descarbonização das economias globais. A transição energética não tem nada de ideológica. É uma necessidade premente objetiva. E a única forma de escaparmos de uma tragédia babilônica é adotando energias zero carbono, e não as fraudes supostamente "baixo carbono", que é um malabarismo conceitual e malandragem inventada pelos carburantes para simplesmente continuar enriquecendo com incentivos públicos.

A mais recente manobra dessa turma que planeja agora pegar carona no hidrogênio para poder se beneficiar de subsídios do governo é a minuta de lei proposta pelo Ministério das Minas e Energia, apresentada ao Conselhão. Uma peça legislativa estarrecedora que dilui o hidrogênio verde entre hidrogênios poluidores a ponto de sequer mencionar no texto o hidrogênio inorgânico renovável (HIR ou H2V), o mais indicado para a descarbonização. Escamoteiam suas reais intenções misturando hidrogênios que emitem carbono com o hidrogênio que não emite carbono na produção nem no consumo como se fossem coisas iguais ou diferentes apenas em questão de nível. Os países mais avançados demarcam 2kg de CO2 por quilo de H2 produzido, mas a lei ora proposta no Brasil folga os limites de emissão para o dobro disso, e esconde da sociedade a procedência dos hidrogênios, de maneira a comportar os interesses de ruralistas.

Para piorar tudo, o mundo vive hoje uma nova guerra fria. As guerras vão se acumulando, as tensões polarizantes aumentam, e países produtores de petróleo como a Rússia já nem escondem mais sua oposição às energias verdes, num caldo geral com jeitão mesmo de apocalipse. Tudo isso torna ainda mais difícil a cooperação internacional para enfrentar as mudanças climáticas, que requerem uma ação coletiva global para serem contornadas. Como bem sabemos, comportamentos oportunistas na consecução de bens públicos como o clima são empecilhos políticos quase intransponíveis, e com isso acabam gerando resultados coletivos irracionais desastrosos. Ainda há tempo de corrigir. Oremos! Ouçam o papa!

MARCELO COUTINHO - Professor doutor e coordenador do curso de hidrogênio verde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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