Visão do Correio

O cuidar precisa ser valorizado

A mulher é submetida a um esforço bem superior ao do homem, que, em média, dispensa 11,7 horas semanais para a casa, enquanto ela dedica 21,3 horas às tarefas domésticas e aos cuidados de familiares

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2023 — Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil — impôs uma reflexão sobre uma realidade que afeta fortemente o universo feminino, mas que, ao longo do tempo, foi naturalizada. A tripla jornada ficou na lista do fato consumado, com todos os danos que representa à saúde física, mental e emocional das mulheres. Ela cuida da casa, dos filhos, do marido e vai para o trabalho, onde exerce sua profissão, garante a própria renda, autonomia financeira e colabora com orçamento doméstico.

A mulher é submetida a um esforço bem superior ao do homem, que, em média, dispensa 11,7 horas semanais para a casa, enquanto ela dedica 21,3 horas às tarefas domésticas e aos cuidados de familiares, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa jornada diária é bem mais exaustiva, considerando o recorte raça/cor. O estudo mostra que as pretas têm mais tarefas (97,7%), superando as pardas (91,9%) e as brancas (90,5%).

Colocar o problema como tema da redação do Enem foi festejado pela secretária Nacional de Cuidados e Família, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), a socióloga Laís Abramo. “É uma realidade para a qual não se presta muita atenção, há uma naturalização de que a tarefa de cuidar das pessoas é algo que compete às mulheres, algo que se entende como uma natureza feminina”, declarou, em entrevista à Agência Brasil.

O equivocado entendimento é, em boa medida, mais um efeito colateral do machismo e forma de retirar dos homens responsabilidades que devem ser compartilhadas. Cuidar dos filhos, dos idosos enfermos, manter limpa a moradia em que todos vivem, entre outras tarefas domésticas, são atividades coletivas — ou pelo menos deveriam ser, uma vez que todos convivem e usufruem do mesmo espaço.

Essa mesma compreensão extrapola o ambiente doméstico e chega aos espaços de trabalho, onde a remuneração das mulheres é sempre inferior à dos homens, mesmo que ambos tenham a mesma formação profissional. Ainda que ela tenha capacitação e experiência superiores à do homem, quase sempre, não é merecedora de uma remuneração maior. Uma das motivações está associada ao próprio cuidar, que poderia comprometer o seu desempenho profissional. Além disso, as profissões associadas ao “cuidar” são as que mais atraem mulheres. Assistência social, psicologia, enfermagem, pedagogia, advocacia, fisioterapia estão entre as favoritas.

O cuidar doméstico, quando não compartilhado, é prejudicial à mulher, que não é remunerada pela sua dedicação. Ela perde a oportunidade de conquistar outros espaços, desenvolver sua capacidade cognitiva e usufruir de uma carreira rentável, o que a torna dependente do companheiro, ou de outro familiar, para suprir suas necessidades pessoais. Isso fortalece o estereótipo de que ela é incapaz. A desconstrução desse modelo preconceituoso passa pela construção de políticas públicas voltadas ao cuidar, como reconhece a secretária Laís Abrama.

O tema motivou debates em vários países, principalmente na América Latina. Em Bogotá, os colombianos experimentam os Quarteirões do Cuidado. São espaços públicos com lavanderias coletivas, cozinhas solidárias e restaurantes populares que amenizam o esforço despendido no trabalho de cuidar. No próximo ano, o governo federal deverá propor marco normativo que reconheça o direito ao cuidado e os direitos de quem cuida. Uma iniciativa importante na esteira que leva à equidade e à paridade de gênero.

 

Mais Lidas