Parte 1, criança judia. "Era sábado de manhã. Dia de descanso sagrado. Papai e mamãe estavam dormindo em casa. Eu me hospedei na casa de meu melhor amigo. Quem conhece um kibbutz deve imaginar onde eu vivia. De manhã, o vento acaricia as folhas das árvores e os passarinhos fazem algazarra. Sinfonia que cura a alma. Em boa parte do dia, o silêncio é quebrado pelas crianças que brincam no parquinho ou pelas conversas entre moradores que se amam. Somos uma verdadeira comunidade, onde todos se ajudam. No meu kibbutz, a paz dominava em boa parte do tempo. Até a manhã daquele shabat, também feriado judaico.
Acordei com as sirenes antiaéreas, às 6h. Corremos até o quarto seguro, que não pode ser trancado por dentro. Eles arrebentaram a porta e gritaram palavras em árabe, as quais eu não entendia. Pelo celular, papai e mamãe se despediram de mim, antes de serem executados. Os homens armados invadiram o local onde estávamos. O pai de meu amigo tentou segurar a maçaneta até onde pôde. Tombou, morto, com um tiro na cabeça. A mãe dele foi levada para Gaza. Eu e meu amigo também acabamos mortos, depois que atearam fogo ao quarto. Ainda não vi papai e mamãe. Não sei onde estão. Não sinto dor, mas tenho saudades da vovó, de meus amigos e do silêncio de paz no kibbutz. Como eu queria estar vivo, escutando os passarinhos, sem ver as imagens horrendas de destruição, dor, morte, ódio."
Parte 2, criança palestina. "Eu costumava acordar com o cheiro do pão pita feito no forno de nossa casa. Aquilo tinha aroma de um lar que nunca conheci como tal. Vivo na Cidade de Gaza. Apesar da miséria e da desesperança, eu tinha o costume de subir na varanda de meus tios e admirar o azul do Mediterrâneo. Aquilo era vislumbrar a liberdade. Aliás, a gargalhada gostosa de minha avó querida preenchia todos os espaços. Trazia paz. Também gostava quando chegava em casa, cansado, e me deitava no colo de mamãe, que me acariciava os cabelos e entoava, baixinho, cantigas tradicionais palestinas. Aquilo era o amor. Meus olhos se enchiam de lágrimas e eu sentia paz. Tudo isso foi quebrado em 7 de outubro. O céu azul de Gaza trouxe os pássaros da morte.
O barulho ensurdecedor das explosões e o zumbido insistente dos drones eram mensageiros do fim. Foi durante a madrugada. Depois de várias noites de exaustão, enfim, consegui dormir por poucas horas. Acordei em meio a muita poeira e a gritos, quase urros, de desespero. Olhei para o lado e vi a vovó morta. Mais abaixo, só avistei o braço inerte com a pulseira que mamãe usava, saindo de um enorme concreto que a esmagou. A mesma mão que me tocava os cabelos e me fazia dormir. Demorou muito para virem me tirar. Eu clamava a Alá que também me levasse. Senti medo, frio, solidão. Mas não senti nenhuma das minha pernas. Eu as perdi. Assim como a vontade de viver."