A Argentina elegeu Javier Milei e repetiu o Brasil de 2018. Escolheu um presidente que rompe com o passado progressista, apresentando propostas tão inconsistentes que, depois da vitória, pergunta-se como foi possível o eleitor escolher alternativa tão arriscada. Bolsonaro e Milei foram eleitos pela esquerda que perdeu legitimidade ao governar com irresponsabilidade para o presente, sem oferecer sonhos para o futuro, defendendo privilégios e praticando corrupção. O cansaço com o passado foi maior do que o risco com o futuro incerto.
O eleitor escolheu ficar contra o passado velho, não necessariamente para construir um futuro novo. Votaram os desesperados com a realidade; os descontentes com todos os outros políticos; os que, de tanto cansaço com a beira do abismo, acham que não há outra alternativa além de jogar-se e tentar depois se recuperar do desastre que, por pior que seja, será diferente do passado e do presente; votaram também os que têm esperança de que o eleito utilize paraquedas que minimize o impacto da queda. A Argentina é uma lição para aqueles que, no Brasil, acham que o medo do abismo é suficiente para barrar a eleição dos que parecem loucos e eleger os que parecem lúcidos, mas sem credibilidade. A memória é curta e esquecemos que, em 2018, fomos a Argentina de hoje; e que, em 2022, por pouco não continuamos na queda.
No que se refere à responsabilidade, o governo Lula tem no Ministério da Fazenda uma voz que passa confiança, mas sem o respaldo total de seu partido, e o próprio presidente da República passa sinais contraditórios sobre a necessidade de responsabilidade fiscal; o afrouxamento de certas regras para nomeação de dirigentes acenam ao risco da volta do aparelhamento da máquina do Estado e consequente corrupção.
No que se refere à esperança, os progressistas brasileiros precisam olhar para a Argentina e perceberem que, apesar de estarmos melhores que eles, não estamos acenando para o futuro. Temos um amplo programa de assistência social com transferência de renda mínima, mas não propomos em quanto tempo os brasileiros não precisarão mais de auxílio estatal para a sobrevivência. Voltamos a ter taxas de crescimento, mas não oferecemos esperança de uma economia dinâmica compatível com o equilíbrio ecológico e com a evolução tecnológica, inclusive com a inteligência artificial. Não damos esperança de como garantir emprego, em uma época de robotização; nem como equilibrar a Previdência Social, em tempo de esgotamento do Estado e de envelhecimento da população.
Não acenamos para um país sem corrupção, sem violência, desemprego, sem pobreza, nem desigualdade; os governos não apontam para reformas sociais que construam uma estrutura distributiva de renda. Nem para garantir filhos de pobres em escolas tão boas quanto filhos de ricos. Estamos consertando desastres herdados do passado, mas não estamos acenando com esperanças para o futuro. Não estamos oferecendo esperanças, apenas conformidade assistencial no mesmo velho sistema que na Argentina levou o eleitor a preferir Javier Milei.
Nossas ideias estão tão caducas quanto às dos peronistas na Argentina: continuamos confundindo sindicatos com povo, público com estatal, economia nacional com realidade global, desperdícios inflacionários com investimentos produtivos, assistência com revolução, justiça com impunidade, partido com país, presente com a construção do futuro, a realidade digital e robotizada com o tempo analógico e mecânico. Ficamos para trás, empurrando o povo na direção do abismo, sem nos preocupar com a paciência do eleitor que por descontentamento decide dar um passo adiante apesar das prováveis consequências.
No momento em que o Brasil exige reformas, os progressistas ficam conservadores e defensores do status quo. É a direita que propõe reformas antipovo, mas que seduzem um eleitorado descontente com a realidade e sem ver esperança em nossos discursos. A Argentina mostrou que prefere um louco direitista com novidade a um progressista lúcido nostálgico do passado e se locupletando de privilégios no presente; e sem se perguntar onde erramos entre 1992 e 2018, continuamos errando por arrogância de uma vitória por 1% do eleitorado contra o Milei brasileiro.
* Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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