Da ventania desmedida que levou o caos a São Paulo, passando pela seca nos rios amazônicos e chegando até as cheias avassaladoras nas Cataratas do Iguaçu, é inegável que a conta da mudança climática chegou. Para completar, 17 de novembro de 2023 será lembrado para sempre como o dia em que, pela primeira vez, a média global de temperatura chegou a 2,07°C. Apesar desse acontecimento, teoricamente, ainda é possível salvar o compromisso firmado no Acordo de Paris, que é evitar que a temperatura média do planeta aumente em mais de 1,5°C, tendo em vista que as métricas do acordo consideram períodos superiores a 20 anos, e não anos isolados.
Porém, é inegável que os esforços para evitar um colapso climático precisarão ser ainda maiores e mais ágeis. A partir de agora, todo tipo de emissão de gás de efeito estufa deve ser combatido com ações concretas, e não com palavras bonitas. Não atingir essa meta é agravar o que já estamos sentindo na pele.
Para tentar pagar essa elevada fatura, uma das discussões mais urgentes que a COP 28, em Dubai, coloca na mesa é o impacto do atual sistema de produção alimentar nesse cenário. O efeito da produção de alimentos no clima e o papel do agronegócio nessa equação vai muito além da discussão sobre se a culpa, afinal, é do arroto do boi nas emissões de gases metano e carbônico.
Um dos grandes problemas tem início quando agricultores gananciosos descumprem o Código Florestal e destinam terras que, legalmente, deveriam ser preservadas no cerrado e no Amazonas para cultivar grãos, principalmente de soja, montando esquemas conhecidos como "lavagem de grãos". O primeiro impacto é na vida silvestre, que perde território de moradia. É importante lembrar que sempre que esses animais morrem — e estamos falando de insetos a mamíferos — parte do bioma onde estão inseridos morre também, alimentando um ciclo de devastação e escassez. O lobo-guará, um dos símbolos do cerrado, ilustra bem essa dinâmica. O maior canídeo da América do Sul se alimenta do fruto da lobeira, semente que fica mais propensa a germinar somente depois de passar pelo trato digestivo do animal. Esse é um dos exemplos de como as plantas também dependem da fauna para sobreviver.
Depois de destruir biomas e vida silvestre, a soja é escoada para empresas fabricantes de ração, locais onde os grãos cultivados dentro da lei se misturam com os provenientes do desmatamento, causando a contaminação de toda a cadeia que deveria ser sustentável. Essa ração produzida à custa de exploração indevida da terra, alimenta animais criados no sistema cruel da pecuária industrial. Estamos falando de bichos como galinhas, porcos e bois, todos seres sencientes, ou seja, assim como os humanos, têm capacidade de sentir dor, medo e empatia, mas que são tratados como mercadorias.
Após uma vida de sofrimento, privados de espaço e com manejos que incluem mutilações, esses animais são abatidos e a carne vai parar nos supermercados e redes de fast-food para, em seguida, ocupar os pratos. Mas, vale lembrar, não no prato de todo mundo. No Brasil, mais de 20 milhões de pessoas não têm o que comer. Esse modelo que não alimenta também é insustentável. Não se engane, cada garfada de proteína animal contém rastros de destruição da biodiversidade brasileira, desaparecimento de vida silvestre e pitadas indigestas de ameaça irreversível ao clima.
Passou da hora das gigantes do agro, que não se importam se a sua atividade destrói o território brasileiro, mas lucram com a exportação, assumirem de fato a responsabilidade pela cadeia produtiva, incluindo o controle da origem dos grãos que alimentam os animais. Igualmente necessário é criar, imediatamente, uma moratória para a pecuária industrial, limitando a expansão da atividade e impedindo a criação de mais fábricas para produção de carne.
Para garantir sistemas alimentares realmente sustentáveis e alimentar os brasileiros sem distinção de classe social, o primeiro passo é valorizar a agricultura familiar e sua produção diversa. Ocupando apenas 24% das terras e sem receber o mesmo incentivo que o agronegócio, esse modelo produz 70% da mandioca e 42% do feijão preto que abastecem o Brasil, entre outros itens alimentares indispensáveis. Investir nesse modelo é a saída para alimentar as pessoas e evitar um colapso climático. Indispensável também é garantir o bem-estar animal, condição essencial para o cumprimento da agenda climática.
* Marina Lacôrte é gerente de sistemas alimentares na Proteção Animal Mundial
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