A encantadora São Luís do Maranhão, conhecida pelos brasilienses como a Jamaica brasileira, é também a terra que abriga o maior quilombo urbano das Américas. Trata-se do Quilombo da Liberdade, certificado pela Fundação Cultural Palmares em 2019, cujo território abrange os bairros Camboa, Fé em Deus e Liberdade, e cuja população ultrapassa os 160 mil habitantes.
Obviamente que nem todos os moradores dessa região são quilombolas, mas as histórias se confundem, ao ponto de que ser da Liberdade significa, em alguma medida, ser do quilombo, um grupo historicamente marginalizado na sociedade brasileira.
Quanto à origem, estudos realizados por Ana Valéria Assunção e Gerson Pinheiro de Souza mostram que os quilombolas da Liberdade vieram da região de Alcântara quando ela foi impactada pelos grandes projetos de desenvolvimento regional e nacional ocorridos em meados do século 20. Ou seja, os membros dessas comunidades foram literalmente "transplantados" para a capital maranhense, reconstruindo ali seus laços identitários e projetos de vida, ao mesmo tempo em que se enraizavam na cultura ludovicense.
Conheci o Quilombo da Liberdade em 2019, quando participei da equipe de certificação da Fundação Cultural Palmares, oportunidade na qual realizamos um cortejo por alguns dos espaços de memória do grupo — dentre eles, as antigas instalações do Matadouro Modelo, que marca a ocupação do bairro da Liberdade pelos seus primeiros moradores, os terreiros Ilê Ashé Obá Yzôo (do pai Wender) e Ilê Ashé Ogum Sogbô (do pai Airton Gouveia), o Bumba-Meu-Boi de mestre Leonardo (liderado pela senhora Regina) e o do mestre Apolônio (liderado pela senhora Nadir) e os projetos desenvolvidos pelo Centro de Integração Sócio Cultural Aprendiz do Futuro (CISAF), cuja liderança está a cargo de Michael Oliveira.
Aquelas pessoas que quiserem conhecer a riqueza cultural do Quilombo da Liberdade poderão seguir o cortejo do projeto Roteiro Quilombo Cultural, que é fruto de uma parceria entre os membros da comunidade e a Secretaria Municipal de Turismo de São Luís.
Além disso, o CISAF criou, em 2016, o Festival de Belezas Negras da Liberdade Quilombola, cujo objetivo é enaltecer o sentimento de pertencimento ao grupo, principalmente dos mais jovens, no seu processo de reenraizamento cultural. No Youtube, o leitor encontrará o documentário Festival de Belezas Negras da Liberdade Quilombola: De onde vem a Liberdade (?), que conta a história do evento.
No trecho final desta narrativa, gostaria de refletir sobre a importância de ter conhecido o Quilombo da Liberdade. Costumo contar para os estudantes com os quais trabalho, no ensino médio da rede pública do Distrito Federal, a história do monge vietnamita Thich Nhat Hanh, que fundou o mosteiro budista Plum Village, na França.
O mestre, falecido em 2022, dizia ter conhecido europeus e americanos que iam ao seu recanto buscando mudar de identidade, tornando-se pessoas de uma outra cultura. Porém, antes que eles tomassem uma decisão definitiva, pedia-lhes que voltassem aos seus lares, reconciliando-se com as suas famílias, igrejas e culturas. Porque, dizia ele, uma pessoa sem raízes não pode ser feliz, uma vez que fica à mercê das intempéries do mundo.
Quando visitei o Quilombo da Liberdade, percebi que as suas lideranças comunitárias faziam um papel semelhante ao de Thich Nhat Hanh, criando o ambiente e instigando principalmente os mais jovens a reconciliarem-se com as suas raízes, redescobrindo-se parte de uma cultura única que tem o antídoto contra os venenos da modernidade.
Em um mundo no qual buscamos cada vez mais o entretenimento anestesiante, a valorização dessas culturas locais — e populares — é um veículo que permite a regeneração do nosso tecido social. Nesse sentido, o Quilombo da Liberdade, além de ser um espaço de resistência da cultura afro-brasileira, é um "transplante necessário" e revigorante das comunidades tradicionais para a cultura regional e para a sociedade brasileira.
* Cristian F. Martins é cientista social e educador
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