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Feminicídio

Artigo: A utopia de uma vida sem violências para meninas e mulheres

O Estado segue adotando medidas pontuais e sem caráter integrado. Enquanto isso, mulheres estão vivenciando um ciclo de violências que tem início de forma invisível e silenciosa

opiniao 1711 -  (crédito: Caio Gomez)
opiniao 1711 - (crédito: Caio Gomez)
postado em 17/11/2023 06:00

"A utopia feminista fala de um outro mundo possível, em que ser mulher não significa ser o destinatário de todo tipo de violência." Essa frase da escritora e filósofa Marcia Tiburi, em sua obra Feminismo em Comum, me põe em desassossego sobre quão distantes ainda nos encontramos da utopia feminista. Aproxima-se mais um Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra Meninas e Mulheres, data instituída pela ONU, em 25 de novembro de 1999. Apesar do tema ser recorrente e de contarmos com inovações importantes no arcabouço legal, com destaque para dispositivos de aperfeiçoamento da Lei Maria da Penha, a luta pelo fim das violências contra meninas e mulheres continua cada vez mais necessária e urgente no país.

Os resultados do levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com os dados do primeiro semestre de 2023, comparados ao mesmo período em 2022, confirmam a gravidade da situação. No Brasil, houve um aumento dos casos de violências sexuais, agressões por violência doméstica e feminicídios. Mas essa não é uma tendência geral, é importante frisar. Os crimes contra a vida caíram 3,4% no país nesse mesmo período, enquanto os casos de feminicídios cresceram 2,6% e os estupros tiveram alta de 14,9%.

Para nossa tristeza, o Distrito Federal teve a maior alta em casos de feminicídio entre todas as unidades federativas do país no período, saltando de seis para 21 casos, com aumento alarmante de 250%. Das vítimas de feminicídio no DF em 2022, apenas 5,6% tinham Medidas Protetivas de Urgência quando foram mortas. Por que não acionaram esse dispositivo legal? Seria por medo, desconhecimento da sua existência ou qual outro motivo?

As peças desse quebra-cabeça cruel simplesmente não se encaixam. O Estado segue adotando medidas pontuais e sem caráter integrado. Enquanto isso, mulheres estão vivenciando um ciclo de violências que tem início de forma invisível e silenciosa muito antes de escalar para um crime fatal. Para rompê-lo, sabemos que é vital a promoção da autonomia econômica das mulheres. Os programas de fomento ao emprego e ao empreendedorismo de mulheres em situação de violência, portanto, devem considerar o componente do acolhimento e a compreensão da dinâmica socioemocional vivida por elas.

É preciso ressaltar que as violências contra meninas e mulheres, que revelam muitas especificidades e agravamentos se levarmos em conta interseccionalidades étnico-raciais, de classe, etárias, territoriais, de identidade de gênero, orientação sexual, dentre outras, constituem uma violação aos direitos humanos mais fundamentais. Mulheres, em toda a sua diversidade, merecem respeito. Não são objeto de controle e posse. São sujeitos com direito à vida, à integridade física, moral e psicológica e à equidade.

É dentro de casa que tudo começa e, às vezes, tragicamente, termina. É com familiares, como padrastos, tios e avôs, que grande parte das meninas passam pelo trauma da violência sexual. É dentro de casa, também, que 61% dos feminicídioss no DF ocorreram em 2022. Os crimes praticados por 61% de autores com relação íntima de afeto com as vítimas, motivados por ciúmes, posse e não aceitação do término do relacionamento, segundo Relatório de Monitoramento dos Feminicídios no Distrito Federal - Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios.

Atuar de maneira efetiva sobre o problema requer a compreensão da sua natureza multidimensional e complexa e não isenta o Estado de assumir sua responsabilidade no seu enfrentamento e superação. Uma audiência pública, este ano na Câmara Legislativa do Distrito Federal, reunindo deputados, representantes dos governos federal e distrital e movimentos sociais para discutir violência de gênero, indicou que persistem os problemas apontados no relatório da CPI do Feminicídio, de 2021, dentre os quais a falta de integração dos órgãos do DF para combater a violência contra mulheres.

Até o presente momento, é a distopia de cada dia que prevalece na existência das meninas e mulheres. Proporcionar uma vida livre de violências para elas requer a articulação dos agentes públicos, responsáveis por políticas públicas, com a sociedade civil. Acredito que é urgente integrar no Distrito Federal os recursos públicos, as ações e os instrumentos existentes em torno de uma política pública transversal de enfrentamento. É preciso que o plano seja movido por uma forte vontade política. É necessário que sejam integradas ações de segurança pública, saúde, rede de apoio a mulheres em situação de violência, ressocialização de agressores, fomento ao trabalho e ao empreendedorismo e assistência social com enfoque na prevenção, com base nas diferentes realidades dos territórios, em ampla escuta à sociedade civil, para que a utopia se torne realidade.

* Raissa Rossiter é socióloga e especialista em direitos das mulheres. Foi secretária-adjunta de Políticas para Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial do Distrito Federal

 

 

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