Ao partir para outra dimensão, há um ano, Gal Costa deixou um imenso vazio no universo da música popular brasileira. Constato isso, entre outras coisas, a cada audição do Fa-Tal, o álbum com o registro do antológico show que assisti em 1972, no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, na primeira vez que estive no Rio de Janeiro.
Eu, recém-diplomado em jornalismo pela UnB, vivia uma fase de muitas descobertas. No verão daquele ano o Rio fervilhava artisticamente. No mesmo Tereza Rachel — hoje, a sala de espetáculo do Teatro Claro — Novos Baianos, que acabara de chegar àquela cidade, se apresentava na chamada sessão maldita, à meia-noite.
No Teatro da Praia, Maria Bethânia brilhava com o inesquecível Rosa dos Ventos; enquanto na boate Mr. Pujol, chamava a atenção o musical Dizi Croquettes, anunciado como A força do macho e a graça da fêmea, protagonizado pelo coletivo de jovens cantores, atores e dançarinos, liderado pelo bailarino e coreógrafo norte-americano Leni Dalle.
Voltando à Gal, a eterna estrela está sendo homenageada por Gilberto Gil com uma nova versão de Barato total, composição dele, gravada por ela no LP Cantar, de 1974, cedida pela Universal Music. A canção, agora, é o quarto e último clipe, que traz a voz original da cantora, no projeto Rádio Bita Especial. Os anteriores Gil revisitou Palco (fevereiro), Andar com fé (maio) e Realce (agosto). Todos podem ser acessados nas plataformas digitais.
Em Barato total, o personagem de Gil passa por vários desafios ao lado de Bita e da turminha formada pelas crianças Lila, Lam e Tito, sempre com bom humor. Segundo o compositor, à época da gravação de Barato total, uma das coisas que mais chamou a atenção de Gal foi a subjetividade da música em relação ao tempo e às emoções. Não custa lembrar que naquele período o país vivia sob o jugo da ditadura militar.
Historicamente, Gil e Gal tiveram trajetórias paralelas. Em 1964, ao lado de Caetano Veloso e Maria Bethânia, eles fizeram o show semanal Nós por exemplo, no Teatro Vila Velha, em Salvador. Logo em seguida Bethânia desgarrou do grupo e fez sua estreia nacional no Rio de Janeiro com o mítico Opinião.
Gal, Caetano e Gil foram "descobertos" nacionalmente após participar dos festivais da Record. Ela em 1979, ao defender Divino maravilhoso; e eles no ano anterior, quando classificaram Domingo no palco e Alegria alegria, em terceiro e quarto lugar, respectivamente.
Os três estariam juntos novamente na Tropicália, movimento libertário e revolucionário, no qual, musicalmente, promoviam a fusão de elementos da MPB e do pop rock internacional. Quando os companheiros foram impelidos ao exílio, pelo ditador de plantão, ela manteve-se no Brasil, na condição de representante do legado deles. Após Caetano e Gil retornarem de Londres, onde estiveram radicados por dois anos, Gal manteve-se como intérpretes preferencial deles. São incontáveis as canções deles, gravadas por ela, ou cantadas nos muitos shows que apresentou ao longo da carreira.
Em 1976 eles se juntaram a Caetano e Bethânia no memorável concerto Doces Bárbaros que empreendeu excursão pelo Brasil e foi visto aqui na capital em 19 de outubro daquele ano, no Ginásio Nilson Nelson. Anteriormente a voz cristalina da cantora pôde ser apreciada em Índia, no teatro da Escola Parque; no Gal Tropical, na Piscina Coberta — hoje Ginásio Cláudio Coutinho.
Tanto ela quanto ele voltaram à cidade inúmeras vezes. Por último, o cantor subiu ao palco do auditório master do Centro de Convenções UIlyses Guimarães, em 23 e 24 de setembro de 2022, com o show da turnê Gilberto Gil In Concert, que havia feito antes em países da Europa.
Gal se despediu dos brasilienses em 7 de agosto de 2022 com uma apresentação no Eixo Ibero-Americano, pelo Festival CoMA — Consciência, Música e Arte, quando homenageou Milton Nascimento com o show Várias pontas de uma estrela. Um dia antes, ao entrevistá-la pela última vez, percebi que a eterna estrela mostrava-se feliz por constatar que os jovens voltaram a prestigiá-la e aplaudí-la — como,na juventude, emocionado, o fiz em Fa-Tal.
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