Apontado como uma ilha de estabilidade dentro da Europa, que enfrenta duas guerras em suas franjas e tem convivido com conflitos sociais sérios em países como a França, Portugal vive um dos momentos mais tensos de sua história política recente. O socialista António Costa foi obrigado a renunciar ao cargo de primeiro-ministro, que ocupava havia oito anos, após uma megaoperação do Ministério Público que investiga suspeitas de corrupção no governo.
A revelação de que há 20 escutas telefônicas envolvendo Costa em favorecimentos a empresas na exploração de lítio e de hidrogênio verde e na implantação de um data center em uma região portuária deixou os portugueses atônitos. A comoção foi maior quando se descobriu que o então chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vitor Escária, guardava 78.500 euros (R$ 417 mil) na sala dele, no Palácio do São Bento, sede do governo.
O vácuo criado pelo pedido de demissão de Costa, muito querido pela população e uma das vozes mais ouvidas na União Europeia, levou o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a anunciar a dissolução do Parlamento, o que ocorrerá em 15 de janeiro de 2024, e a convocar eleições para 10 de março. Esse poder é conferido pelo sistema semiparlamentarista adotado por Portugal. Em pronunciamento à nação, o líder português afirmou que a democracia exige que, novamente, todos aqueles que querem um mandato passem pelo escrutínio da sociedade. Não há por que ter medo do povo.
É evidente que o Partido Socialista (PS), do primeiro-ministro demissionário — ele continuará no posto pelo menos até a votação do Orçamento da União, marcada para 29 de novembro —, que tem maioria absoluta na Assembleia da República, já mostrava fadiga junto ao eleitorado. Com as crises mais recentes provocadas pela pandemia do novo coronavírus e pelo conflito entre a Rússia e a Ucrânia, os portugueses voltaram a conviver com a disparada da inflação, ameaçando o bem-estar social que todos prezam. Em meio ao crescente descontentamento popular, uma série de escândalos derrubou ministros e deu argumentos de sobra para ataques da oposição, sobretudo, a mais radical, posicionada na extrema direita.
O país tranquilo, seguro, que atraiu centenas de milhares de brasileiros nos últimos anos, viu crescer a intolerância contra estrangeiros, que passaram a ser olhados como ameaças em um momento de dificuldades financeiras enfrentadas pela classe média. Não por acaso, tornaram-se frequentes denúncias de xenofobia, com Portugal entrando no mapa dos movimentos anti-imigração, conforme estudo conduzido pela professora Thaís França, doutora em sociologia pela Universidade de Coimbra — um quadro preocupante ante as incertezas políticas.
Teme-se que, com a inclinação do eleitorado para a direita mais radical, Portugal deixe de ser um país receptivo e de fortes avanços institucionais para se tornar sectário, com as portas se fechando para a modernidade e para a diversidade. Ao anunciar a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições, o presidente da República explicitou a importância de não se retroagir em conquistas que só foram possíveis graças ao amadurecimento da democracia, que completará 50 anos em 2024 no país europeu.
Rebelo de Sousa conclamou os portugueses a escolherem representantes que assegurem a estabilidade e o progresso econômico, social e cultural em liberdade, pluralismo e democracia. "Um governo com visão de futuro, tomando o já feito, acabando o que importa fazer e inovando no que ficou por alcançar", frisou. Os eleitores terão, portanto, quatro meses para avaliar as propostas dos candidatos à Assembleia da República, de onde sairá o futuro primeiro-ministro.
Portugal, que teve uma das mais longas e sangrentas ditaduras da Europa, que manteve a maior parte da população na pobreza, precisa preservar a visão de futuro, em que direitos sejam mantidos e o progresso seja uma realidade. Itália e Hungria estão bem próximas para servir de exemplos de que caminho não seguir.
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