Junto com a vergonha indelével de haver mantido um regime de escravização de homens e mulheres negras por quase 400 anos, o Brasil acrescentou a vergonha insuperável de haver a extinguido com dois artigos de lei: Está extinta a escravidão desde dessa data. Revogam-se as disposições em contrário. Sem direitos, renda, indenização, reparação, terra, moradia, educação. Sem direito de voto e sem poder ser votado pela limitação do analfabetismo e da renda.
Distinguido e desigualizado numa república construída sobre os fundamentos da liberdade, igualdade e a garantia de um Estado Democrático e de Direito, o que se seguiu foi mais um engodo, que substituiu a escravidão legal pela condição análoga à escravidão e transformou o racismo, que antes sustentava a subjugação humana, em instrumento que, até os dias atuais, inferioriza, aparta, discrimina e cerceia o acesso, a participação e o usufruto isonômico dos direitos e da cidadania por conta de raça e da cor da sua pele.
A despeito do "espírito da época", como conciliar a escravização, um crime de lesa humanidade que teve como fundamento o racismo se ambos são tidos como crimes imprescritíveis? E o lucro obtido com essa infame indústria, constitui locupletação ilícita? Qual a culpabilidade e as responsabilidades de seus operadores de ontem e seus herdeiros de hoje?
Para essas e tantas outras questões insistentemente silenciadas do nosso histórico da escravidão, o inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal para apurar a conduta do Banco do Brasil na operação, na sustentação e nas vendas de serviços, produtos financeiros e lastro para a realização do comércio negreiro representa uma extraordinária oportunidade para passar a limpo esse período horripilante da vida do país.
Representa, também, oportunidade única para explicitar como operava a organização dessa cadeia ao menos injuriosa, quem foram seus operadores e quanto cada um deles lucrou. Servirá também para conhecer quem foram os negros comercializados, de onde vieram, quem eram seus familiares, por quem e por quanto foram comprados e vendidos; dados até hoje custodiados do Banco do Brasil.
Se é fato que o debate e o deslinde dessa questão poderá consumir tempo e até frustrar aqueles que nela veem uma luz no fim do túnel do esquecimento e apagamento da história da escravidão, o Banco do Brasil, empresa de referência internacional e, hoje, baseado em sólidos fundamentos de respeito e valorização da dignidade humana, pode, da mesma forma, fortalecer o espírito do novo tempo civilizatório e usá-lo como objeto de reflexão voluntária.
Pode também, independentemente de qualquer questão, reconhecer que sua gênese, além de imoral, é inaceitável e indefensável para os dias atuais. E, consequentemente, assumir que a ação daqueles que construíram sua história vitoriosa foi realizada sobre a dor, o sofrimento e o vilipendio do homem e da mulher negra; e que seu rico patrimônio amealhado e reproduzido teve como fonte a apropriação indébita do resultado do trabalho forçado e da operação de lastreamento econômica e financeira da indústria da escravidão.
Logo, se é de inventário e esclarecimento histórico que essa agenda necessita, o Banco do Brasil pode ser o primeiro a financiar a produção das pesquisas nos seus arquivos e de congêneres. Pode brindar o país, os negros e os brancos com um museu de primeiro mundo na maior capital negra do país que destaque e honre a sagrada memória dos que tombaram na escravidão. Pode recortar em todos os seus centros culturais um espaço de qualidade para a história do negro e suas realizações. Pode, por meio da sua universidade corporativa, construir o maior projeto de letramento racial corporativo do país e, com sua poderosa fundação, produzir o material didático e formar os professores que as escolas públicas necessitam para implementar a história do negro e a história da África, obrigatória no currículo escolar.
Pode nomear executivos negros nos colegiados de administração e na direção executiva nas dezenas de empresas de seu portfólio e exigir que, nas empresas que tomam recursos da Previ, seu gigantesco fundo de pensão, seja cumprida essas medidas. Pode criar um fundo de apoio à manutenção do jovem negro cotista nas universidades e na preparação para os concursos de cotas no serviço público, e até um cartão de crédito especial para apoio e fomento ao empreendedorismo negro e para facilitar seu acesso à tecnologia e aos equipamentos e universo da cultura. Da mesma forma, pode fortalecer e cooperar com a cadeia da economia criativa da cultura negra, como o carnaval, as escolas de samba, os ambientes da capoeira e os espaços da sua religiosidade.
O Banco do Brasil não pode tudo, mas pode muito. Se a escravidão apagou a história do negro e o tripudiou sobre seu pertencimento, o Banco do Brasil, com poucos gestos de reverência e justiça, pode ajudar recontar a verdadeira história do povo brasileiro e conscientizar a todos da sua e demais histórias terríveis do passado. Justamente para que, dela, todos tenham conhecimento e consciência, e principalmente para que ela nunca mais se repita.
José Vicente - Advogado, sociólogo, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e doutor em educação
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br