Em 1986, Portugal passava a fazer parte da União Europeia (à época, CEE), o que aproximava a nação ibérica desse bloco, tornando-se, ainda mais, um destino para migrantes do continente antigo em busca de nova residência. Essa expansão de horizontes havia sido iniciada, anteriormente, com a descolonização política de territórios africanos e o consequente fluxo diaspórico rumo à ex-metrópole lusitana.
Paralelamente, no fim dos anos de 1980, com a queda do Muro de Berlim e a dissolução do regime soviético, muitos cidadãos do Leste Europeu partiram rumo ao norte e ao oeste. Portugal passou a acolher nacionalidades de origens distintas e, como o domínio de um novo idioma é um dos anseios comuns aos migrantes, ao lado da empregabilidade e do acesso à moradia, passou-se a falar, ainda nos anos de 1990, sobre o conceito de língua de acolhimento.
Uma das precursoras dessa terminologia é Maria Helena Ançã (Universidade de Aveiro), ao defender que “o domínio da língua é seguramente a via mais poderosa para a integração social, para a igualdade de oportunidades e para o exercício da plena cidadania”. Com o ingresso à União Europeia, Portugal recebe mais grupos da região oriental da Europa, na comparação com as nações africanas. Independente da nacionalidade, falamos aqui de fluxos diaspóricos com um fundo político — e em muitos casos, involuntários. Ou seja, a língua a ser aprendida não é necessariamente desejada ou sequer conhecida, adotando para si a função de uma tecnologia de acolhida humanitária.
Trazendo o eixo para os trópicos, o Brasil é uma das economias mais estabelecidas da América Latina e, a despeito de suas turbulências sistêmicas, tornou-se destino de muitos vizinhos de continente, como venezuelanos, bolivianos, peruanos, haitianos, colombianos, e de refugiados do outro lado do Atlântico, como afegãos, congoleses, nigerianos e marroquinos. No Instituto Adus, onde sou professor de Português como Língua de Acolhimento (PLAc) desde 2017, mais de 65 nacionalidades e 17.000 pessoas foram atendidas desde 2010, ano de fundação.
Como o eixo pedagógico é um dos pilares que norteiam a Ong, a adoção de bons materiais didáticos não pode decepcionar. Desde meu ingresso, usamos uma apostila própria, intitulada Conectadus, elaborada por uma pesquisadora de PLAc, a Giselda Pereira. Para além desse conteúdo, emprego outros livros, como o Pode entrar (publicação do Acnur), o Portas abertas, elaborado pela Prefeitura de São Paulo, a cartilha de exercícios Fala & Ação, também de Giselda Pereira, e o Entre nós – Português com refugiados (grifo para o uso da preposição “com” e não “para”).
Na prática, para quem se interessa em enveredar-se pelo campo, há nuances a serem consideradas, como dar aulas com ênfase em situações reais e contextualizadas (compras em mercados e farmácias, recorrência a serviços de saúde, acesso à moradia e ao transporte) e reforçar aspectos culturais e peculiaridades, mantendo uma atenção especial à gramática, à fonética e ao vocabulário. Ademais, o uso de jogos pode ser eficaz, bem como a indicação de aplicativos gratuitos de notícias e de aprendizagem gamificada.
Um dos pontos mais imprescindíveis em uma aula de PLAc é, possivelmente, o emprego de referências customizadas. Em uma turma com nigerianos, pode ser interessante introduzir algumas palavras originadas do iorubá, como caçula, cochilar, moleque e caçamba, que usamos em nosso português. Se o grupo for de sírios, vale citar que existe uma vasta comunidade dessa nacionalidade no Brasil, fazendo com que eles se sintam mais acolhidos.
Ainda nessa relação de experiências empíricas, faz-se importante listar cuidados a serem tomados e comportamentos a serem combatidos, como perguntar o motivo que lhes trouxe ao Brasil ou questões mais íntimas sobre seus familiares, valer-se de referências às quais me refiro como capitalizadas (por exemplo, dar uma aula sobre um restaurante que seja menos acessível ou sobre atividades culturais, como um show de um artista renomado, que tenham marcadores sociais envolvidos), aceitar ou conceder qualquer tipo de bonificação material — salvo raras situações, como mutirões para arrecadação de alimentos — e evitar uma abordagem piedosa — afinal, as pessoas querem ser acolhidas e não se sentirem ainda mais vulneráveis.
*Sebastião Rinaldi é Jornalista e professor de Português como Língua de Acolhimento (PLAc) no Instituto Adus
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