Se prestarmos atenção, notaremos que o crédito está por todo lugar: financiamos o imóvel, o carro e, até mesmo, algumas despesas básicas, quando utilizamos cartão de crédito para pagar o supermercado. Portanto, endividamento é uma consequência natural de uma sociedade baseada no consumo, que tem o crédito como sua principal ferramenta. Segundo dados da FecomercioSP, em setembro de 2023, 68,7% das famílias brasileiras estavam endividadas.
A dívida, em si, não é algo negativo. Em muitos casos, ela pode servir de ferramenta para a concretização de planos ou superação de momentos de crise. O problema ocorre quando o endividamento se torna insustentável. Conforme a FecomercioSP, 10,9% das famílias brasileiras afirmam não ter condições de pagarem suas dívidas — ou seja, seriam potenciais superendividadas.
Segundo o Código de Defesa do Consumidor, considera-se superendividado o consumidor de boa-fé manifestamente incapaz de pagar suas dívidas de consumo sem prejuízo do mínimo existencial, entendido como os recursos necessários para a manutenção de um padrão de vida digna.
O superendividamento impacta na autoestima do devedor. São comuns o sentimento de vergonha e as tentativas de esconder sua real situação financeira, o que contribui para o agravamento do quadro. Há registros de que o superendividamento reduz a produtividade da pessoa, que se sente incapaz de superar a situação pelos meios próprios.
É preciso superar o sentimento de vergonha que pesa sobre o devedor. Aquele que se endivida de boa-fé não pode ser considerado culpado pelo seu superendividamento, pois ele agiu conforme a lei e o mercado lhe permitiam e, em certa medida, até lhe estimulavam a agir.
A ideia de um consumidor racional, capaz de fazer escolhas planejadas e pensadas, há muito, foi superada. Estudos apontam que o raciocínio humano é afetado por ilusões cognitivas (vieses) e atalhos de pensamento (heurísticas) que, muitas vezes, conduzem à tomada de decisões contrárias aos interesses da pessoa. Nem mesmo pessoas com elevado grau de instrução estão isentas de tomar decisões que conduzem ao superendividamento.
Não se pode ignorar que fatos imprevistos podem impactar negativamente no equilíbrio do orçamento doméstico. Desemprego, doença, divórcio e outros acontecimentos podem reduzir a renda ou aumentar a despesa familiar, o que pode transformar um endividamento saudável em descontrole.
O Código de Defesa do Consumidor reconhece que o superendividamento é um fenômeno de interesse coletivo, cujo tratamento é responsabilidade de toda a sociedade. Partindo do princípio de que todos agiram de boa-fé, a lei adotou a conciliação como ferramenta principal para a superação desse cenário.
A conciliação é um convite para que credores e devedores atuem de forma cooperativa na solução do superendividamento, construindo conjuntamente um plano de pagamento adequado ao caso.
Dos devedores, esperam-se medidas no intuito de promover a organização de suas finanças pessoais para viabilizar a construção de um plano de pagamento que permita a quitação dos seus débitos e preserve seu mínimo existencial. Dos credores, espera-se a compreensão de que o superendividamento não tem solução nas condições regulares do mercado, e que seu tratamento depende de regras de negócio específicas para atender tal público. A simples repactuação não é suficiente para uma solução definitiva do problema, especialmente nos casos em que o nível de endividamento alcança proporções incompatíveis com a realidade de renda do consumidor.
As experiências realizadas pelo Poder Judiciário apontam que a conciliação realizada na presença de todos os credores é capaz de construir soluções mais bem ajustadas a cada caso. Durante os seis anos do Programa de Prevenção e Tratamento dos Consumidores Superendividados pelo TJDFT, foram negociados mais de R$ 35 milhões em dívidas, demonstrando que a conciliação é capaz de promover uma recuperação responsável do crédito, atendendo os interesses dos envolvidos.
Com a Lei nº 14.181/21, o TJDFT inicia uma nova fase do programa, adaptada aos desafios de um mundo cada vez mais virtual, mas preservando o modelo de atendimento com foco na pessoa. Acima de tudo, mantém-se a firme crença no diálogo e na cooperação como ferramentas ideais para a solução eficiente dos conflitos.
*Gabriel Coura - Juiz de direito substituto e coordenador do 4º Núcleo Virtual de Mediação e Conciliação
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