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Artigo: Os desafios do direito de acesso à internet

A expansão alarmante da cibercriminilidade só reforça a necessidade de regulações efetivas e uma atuação incisiva do Estado

A hiperconectividade da vida contemporânea — que nos obriga a carregar, ininterruptamente, dispositivos eletrônicos que, a um só tempo, informam e distraem — tem feito com que o acesso à internet, direito de 4ª geração, transforme-se em um requisito para o usufruto de garantias de gerações anteriores, como a dignidade, a liberdade de expressão e a educação. Todavia, tal centralidade do virtual nas práticas sociais deve ser regulada, sob pena de afronta aos direitos de 5ª geração, isto é, em suma, a paz; ou, em outras palavras, a proteção contra violências.

Observamos, na recente quadra histórica, a imprescindibilidade dos direitos de 4ª geração — sobretudo em um cenário de crise como foi o da pandemia da covid-19 (cujos reflexos ainda perduram), quando as escolas fecharam e os alunos só puderam seguir com os estudos por meio de aulas remotas, através da rede mundial de computadores. Na mesma época, no caso do Brasil, beneficiários de programas de transferência de renda e outros auxílios emergenciais dependeram de aplicativos de smartphone para obter os recursos financeiros disponibilizados pelo governo federal. Em ambos os casos, não fosse o acesso à internet, fora o direito à educação, a própria dignidade da pessoa humana ficaria prejudicada.

No período eleitoral do ano passado, percebemos também a relevância das plataformas da web para o exercício da liberdade de expressão — para o bem e para o mal, é claro —, tanto que a Justiça Eleitoral adotou medidas de contenção, como o bloqueio de perfis e a exclusão de postagens, para evitar que a desinformação influenciasse negativamente o andamento do pleito. Muitas das determinações seguem vigentes, dentro do esforço conjunto das instituições republicanas para combater as investidas golpistas que culminaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023.

"As democracias contemporâneas vivem uma conjuntura de expiação diante da emergência do recrudescimento do populismo a nível global. Estratégias de desinformação e discursos sectários de radicalização política têm influenciado o debate público, colocando em risco garantias individuais", discursou o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes (STF), decano da Corte, ao Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos (Conjur) da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), em evento realizado em junho deste ano.

A questão realmente é grave, como apontou o magistrado, e vai além. Conforme a pesquisa TIC Domicílios 2022, realizada pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e publicada em maio deste ano, o total de domicílios com acesso à internet no Brasil chegou a 80%. Em números absolutos, há 60 milhões de domicílios conectados — 27 milhões a mais do que o registrado em 2015. Apesar de vertiginoso, semelhante crescimento não se compara com o avanço dos crimes digitais, que em 2022 aumentaram 65,2% em relação ao ano anterior, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em julho.

Essa expansão alarmante e sem precedentes da cibercriminalidade — que viola os direitos de 5ª geração — só reforça a necessidade de regulações efetivas e de uma atuação incisiva do Estado no amparo aos cidadãos nesse novo front, doravante indispensável para o gozo de prerrogativas pregressas, antes sedimentadas. À medida que mais brasileiros e brasileiras se conectam, agigantam-se os riscos associados à falta de privacidade, a fraudes e a variados tipos de golpes e ataques cibernéticos. A internet, ferramenta democrática de comunicação, torna-se, contraditoriamente, uma ameaça quando as vulnerabilidades sistêmicas e a má intenção de indivíduos se combinam sem oposição.

Se, por um lado, a inclusão digital emerge como um pilar de sustentação dos direitos fundamentais, por outro, suscita complexos desafios éticos e legais, que podem comprometer o bem-estar coletivo e a paz social. Não se trata apenas de assegurar o acesso universal e sem embaraços à rede: é preciso fazê-lo de forma coordenada, responsável e segura. O poder público, as organizações privadas e a população devem garantir que a difusão das tecnologias se converta em uma força de promoção de oportunidades —, e não em um vetor para a escalada de transgressões. Nesse contexto, a conciliação entre os direitos de 4ª e de 5ª geração é um imperativo moral, que define o tipo de sociedade que estamos dispostos e empenhados em construir.

*Advogado, membro consultor da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB

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