Infância

Artigo: Gravidez forçada, criança não é mãe

Precisamos fortalecer mecanismos de vigilância para que não se retroceda na luta por políticas que acolham meninas que gestam e se encontram em situação de vulnerabilidade

RUBIA ABS DA CRUZ - A gravidez infantil forçada tem sido um problema historicamente invisibilizado — falando-se, no máximo, em gravidez na adolescência, sem abordar o impacto da maternidade infantil forçada sobre o futuro das meninas pequenas. Observa-se que a maioria dos casos de gravidez infantil aparece como produto da violência sexual exercida por homens integrantes da família, seguido da violência exercida por vizinhos e conhecidos. Trata-se de um crime que ocorre no âmbito doméstico e familiar, o que agrava o problema. As meninas representam 61,4% do total de casos de estupro: são 40.659 vítimas apenas no último ano.

As desigualdades de gênero, étnico-raciais, econômicas, entre outras, afetam a capacidade das meninas de exercerem todos os seus direitos, como o direito à educação e à saúde, agravando sua situação de vulnerabilidade. Dados da pesquisa Investigación sobre la interrelación y los vínculos entre la violencia sexual y la muerte de niñas y adolescentes en la región de América Latina y el Caribe (2010 - 2019), do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), apontaram para outros problemas vinculados ou decorrentes da gravidez infantil, como continuidade da violência sexual, suicídio, desaparecimento ou tráfico de meninas, morte materna e feminicídio. A justiça reprodutiva inexiste nesses contextos.

Os números de gestações de crianças são assustadores: somente no ano de 2022, foram registrados 14.265 nascidos vivos de meninas com menos de 14 anos. Em 2021, esse número foi ainda maior: 17.457 nascidos vivos. A pesquisa da Rede Feminista de Saúde verificou que 252 mil meninas de 10 a 14 anos engravidaram e pariram de 2010 a 2019, e o Fórum de Segurança Pública destacou que, do total de estupros registrado, 61,4% estão nessa faixa etária, e, desse total, 75% são meninas negras e pardas, sendo as mais violentadas pela sociedade e pelo Estado.

Há anos, organizações da sociedade buscam dar visibilidade à violação de direitos de meninas em nosso país. Em 2017, o Cladem desenvolveu a Campanha Jugar o Parir (Brincar ou Parir) — Gravidez infantil forçada na América Latina e no Caribe, motivada pelo estudo Niñas Madres (Meninas Mães), onde a gravidez forçada em crianças foi entendida como uma forma de tortura. O estudo desvelou toda a fragilidade das políticas e dos serviços públicos de atenção à violência sexual e ao aborto legal nesses países, incluindo o Brasil.

No entanto, tentativas de retrocesso e violação dos direitos de crianças brasileiras não param de existir. Hoje, parlamentares buscam dar celeridade à tramitação do Estatuto do Nascituro, projeto de lei que está na Câmara dos Deputados desde 2007. A sua aprovação impediria o acesso ao aborto legal em todas as situações atualmente permitidas por lei. Isso inclui os casos de gestações decorrentes de estupro, como nos casos de meninas mães.

Olhando de frente para essa realidade, lançamos a campanha Criança Não é Mãe, visando, sobretudo, combater a tentativa de parlamentares que, ignorando essa realidade, tentam retirar direitos das meninas através do Estatuto do Nascituro.

Esperamos, com a campanha Criança Não é Mãe, colocar luz sobre as violações de direitos no sistema de atenção às meninas vítimas de violência sexual. No marco do Dia das Crianças, queremos chamar atenção ao fato específico de que a proposta do Estatuto do Nascituro é inconstitucional, violando os direitos fundamentais de milhares de meninas.

Sabemos que, para além de conquistar direitos e inscrevê-los em nossas leis, precisamos fortalecer os mecanismos de vigilância para que não se retroceda na luta por políticas que acolham e atendam meninas, mulheres e pessoas que gestam e que se encontram em situação de vulnerabilidade social. A vida dessas meninas não pode ser pautada pelas religiosidades, considerando ser o Brasil um país onde a privacidade e a intimidade são invioláveis, conforme a Constituição Federal. A dignidade dessas meninas deve ser assegurada, e não violada pelo Estado.

Nesse sentido, as políticas públicas devem se adequar aos marcos jurídicos, e esses devem assegurar direitos e não retirar direitos, conforme propõe o Estatuto do Nascituro. Precisamos de respostas no campo da saúde, da justiça, da educação e do desenvolvimento visando proteger nossas meninas. Por isso, ecoamos: nenhuma criança deveria ser violada e muito menos deveria ser mãe.

 


Mais Lidas