Editorial

Visão do Correio: A Pax Americana em declínio

A ausência de um árbitro global eficaz deixa espaço para o aumento de conflitos regionais e competição geopolítica, o que pode levar a mais conflitos, deslocamento de populações e crises humanitárias

Surgida após o fim da Segunda Guerra, a chamada Pax Americana se intensificou com o fim da Guerra Fria, em 1991, quando os EUA emergiram como única superpotência mundial e se tornaram uma espécie de "polícia do mundo". O termo faz referência à Pax Romana, um período de cerca de 200 anos, entre 27 a.C. e 180 d.C, de considerável prosperidade e relativo sossego no que era, então, o principal império do mundo. A expressão também foi reaproveitada para batizar o período de quase cem anos no século 19, que ficou conhecido como Pax Britannica, em que o Império Britânico, após as Guerras Napoleônicas, se tornou a principal potência mundial.

O mundo em que vivemos é muito mais acelerado. Por isso, não deveria ser surpresa a constatação de, após quase 30 anos, a Pax Americana dá claros sinais de declínio. Como polícia do mundo, os EUA passaram a evitar que surgissem conflitos nos seus quintais: Europa, América do Sul, alguns países do Oriente como Japão e Filipinas. Quando esses confrontos se tornaram inevitáveis, como a guerra civil provocada pela dissolução da Iugoslávia, os Estados Unidos (EUA) intervieram indiretamente, usando a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para bombardear Belgrado, a capital da Sérvia. Mas os sucessivos atoleiros que os EUA se meteram — Iraque e Afeganistão, principalmente — minaram a opinião pública interna de que o país seria capaz de se manter como polícia do mundo, e pressionaram por uma gigantesca retração militar, que foi levada a cabo pelo ex-presidente Donald Trump e vem sendo seguida pelo atual mandatário norte-americano, Joe Biden.

O resultado tem sido um mundo em desordem. A guerra na Ucrânia, os conflitos recorrentes entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza, e a crescente tensão entre a China e Taiwan são exemplos claros de como a Pax Americana está se enfraquecendo. O caso da Ucrânia é emblemático. O país vem recebendo suporte e armamento desde a invasão da Rússia, em fevereiro de 2022, no que vem sendo considerado o maior conflito militar europeu desde o fim da Segunda Guerra. Mas à medida em que o confronto se estende, sem que um desfecho se aproxime, o apoio ocidental ao presidente ucraniano Volodymyr Zelensky vem ficando cada vez mais frágil.

No caso da guerra entre Israel e o Hamas, foi marcante que a visita de Joe Biden ao estado judeu tenha sido marcada por um bombardeio — até agora de origem incerta — a um hospital palestino, com um saldo de mais de 500 mortos. Também foi marcante o veto dos EUA no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) à proposta do Brasil de um cessar-fogo e de abertura de corredores humanitários. Diplomatas de outras potências, como China e Rússia, além de entidades dos direitos humanos, criticaram abertamente a posição de Washington.

Por fim, a tensão crescente entre a China e Taiwan destaca a incapacidade dos EUA de conter a expansão de influência chinesa tanto na região quanto em outras partes do mundo, já que o governo de Pequim, por meio da iniciativa da Nova Rota da Seda, já se insinua como principal financiador de outros países no continente africano. Portanto é evidente que, embora a Pax Americana não tenha sido isenta de críticas e controvérsias, sua diminuição tem deixado o mundo em um estado de maior incerteza. A ausência de um árbitro global eficaz deixa espaço para o aumento de conflitos regionais e competição geopolítica, o que pode levar a mais conflitos, deslocamento de populações e crises humanitárias. Se os EUA foram imperfeitos em seu papel como polícia do mundo, sua ausência recente deixa um vácuo que gera desafios ainda maiores. Qualquer passo em falso pode significar mais combustível em um mundo já em chamas.

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