Desde o século XVI, os tribunais brasileiros têm gênero: o masculino. Somente no século XX as mulheres começaram a ter paulatino acesso à carreira da magistratura. A primeira juíza brasileira, Auri Moura Costa, foi empossada no cargo em 1939 e promovida ao cargo de desembargadora do TJCE, por antiguidade, em 1968. Apenas 15 anos depois, em 1954, seria aprovada uma segunda juíza no país, Thereza Grisólia Tang, promovida a desembargadora do TJSC em 1975. Segundo o relatório Justiça em Números, de 2023, enquanto 40% dos juízes do país são mulheres, apenas 25% dos desembargadores são do sexo feminino. Em relação às ministras, a representatividade é ainda menor: 18%. Treze tribunais do país não têm desembargadoras ou ministras em seus quadros.
O mundo foi desenhado para melhor atender aos interesses masculinos. Crianças do sexo masculino têm mais chance de sobreviver em qualquer lugar no mundo. Mais chance de encontrar vagas em escolas, de conseguir trabalhar e estudar, de chegar ao curso superior, de passar no concurso, de comparecer a encontros de classe, e de acumular funções e participar de comissões e comitês, enquanto a mulher, a mãe ou a empregada (não raro, uma mulher) cuida da vida doméstica. Segundo o secretário-geral da ONU, António Guterres, se nenhuma ação afirmativa for implementada, serão necessários 300 anos para se alcançar a paridade de gênero. Nem a nossa nem as próximas gerações tão cedo exerceriam o direito de acesso igualitário a oportunidades. A ampliação de acesso ao exercício de direitos promoveria um ciclo virtuoso em direção à igualdade material.
A carreira da magistratura não passa ilesa às consequências da cultura patriarcal. As juízas, invariavelmente, acumulam atividades de cuidado da família e carreira, o que dificulta o acesso delas a cursos, promoções ou a indicações para assumirem cargos que exijam ainda mais entrega pessoal e profissional. Os juízes do sexo masculino ocupam, majoritariamente, os ambientes de poder nos tribunais, o que retroalimenta a roda da desigualdade.
A Constituição Federal consagra o princípio da igualdade material, o Estado Democrático de Direito, e revela como sendo objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. A Carta Fundamental, portanto, é eloquente quanto à necessidade de implantação de política pública afirmativa para legitimação democrática das Cortes. No Brasil, mais da metade da população é do sexo feminino. É interesse público, como já reconhecido em cortes americanas, sul-africanas e europeias, que os Poderes constituídos retratem de forma mais fiel possível a população que os detém.
São 400 anos de predominância masculina no Judiciário. Trinta e cinco anos sem implementação de política de ação afirmativa, desde a promulgação da Carta Constitucional. Para além do interesse individual de magistradas, a regulamentação do acesso de juízas aos tribunais promove o interesse do povo brasileiro. Quanto mais representativo o Poder, mais chances de que ele cumpra de forma adequada sua missão institucional de proteção de direitos fundamentais de todas as pessoas. No país que tem o triste estigma de ser um dos mais desiguais do mundo, segundo a ONU, isso faria toda a diferença na redução da desigualdade social.
A enorme gama de privilégios que facilitam a existência e a performance masculinas, se não ajustada, só aumentará. O desenho do mundo e do Poder Judiciário só mudará quando os lugares de Poder forem compartilhados de forma equânime e democrática. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que o Conselho Nacional de Justiça tem competência para editar normas primárias que concretizem princípios constitucionais (ADC 12). Já decidiu, também, que as ações afirmativas são constitucionalmente legítimas, inclusive no tocante ao gênero (ADC 19), pois promovem a igualdade material. Conselheiros e conselheiras têm, nesta semana, a oportunidade de consertarem injustiças históricas, ao regulamentarem o acesso equitativo de magistrados e magistradas aos tribunais brasileiros, garantindo-se o pluralismo nos espaços de Poder. Tal Resolução teria vigência transitória, até que se concretizasse a paridade de gênero buscada. E, se passar, a Resolução já chega com pelo menos 35 anos de atraso.