Em maio, o governo instituiu um Grupo Tripartite de Trabalho (GT) para discutir a regulação do trabalho de motoristas e entregadores intermediados por plataformas digitais. Promessa de campanha do então candidato Lula com foco em um universo de mais de 1,5 milhão de trabalhadores, o tema ganhou visibilidade internacional na fala do agora presidente.
A proteção aos direitos desses trabalhadores foi a justificativa para a criação do GT, sendo a iniciativa, por si só, um grande avanço no debate do tema. Cabe ressaltar, no entanto, que se malfeita, a regulação trará consequências extremamente danosas à economia e aos próprios trabalhadores.
Convidada a participar do GT apenas como ouvinte, a Abrasel representa 1,9 milhões de brasileiros que empreendem no setor, gerando 5,1 milhões de empregos diretos e a participação de 2,7% no PIB nacional. Diante de tamanha responsabilidade, defende uma regulação tão justa para os trabalhadores quanto eficiente para manutenção e crescimento do setor de alimentação fora do lar no país.
Para tanto, entende que dois princípios são basilares e intransponíveis: o caráter autônomo do trabalho para preservação da flexibilidade e da independência que lhe são características; e a concessão de direitos fundamentais previstos no regramento brasileiro, com distribuição equilibrada de custos. A conta não pode pesar excessivamente nem para os trabalhadores, nem para os empregadores.
Encerrado no fim de setembro, sem qualquer manifestação contundente do governo, o “ponto final” do GT foi somente um conjunto de sinalizações sobre ganhos e proteção social – ainda sem caráter oficial: uma renda mínima, por hora trabalhada, de R$30 para motoristas de veículos e de R$17 para entregadores, valor significativamente acima da referência internacional. Em diversos países, o salário mínimo-hora tem sido considerado parâmetro para definição do ganho base desses trabalhadores, com acréscimos de 20 a 30% sobre o valor da hora trabalhada. No Brasil, o salário mínimo por hora é R$6, de modo que a proposta do governo estabelece um piso superior a 180%, seis vezes maior.
Já a proposta de previdência posta à mesa pelo governo, sem grandes conversas, não dialoga com a realidade do setor. Prevê alíquotas de 20% e 7,5% para empresas e trabalhadores, respectivamente, a incidirem sobre 25% dos ganhos brutos do motorista e injustificáveis e absurdos 50% dos ganhos brutos do entregador. São três as preocupações da Abrasel com relação ao assunto.
Primeiramente, a proposta do governo desconsidera, por completo, a Instrução Normativa da Receita Federal (IN RFB 2110/2022), segundo a qual o salário de contribuição de motoristas de transporte individual remunerado e transportadores de carga deve ser equivalente a 20% dos seus ganhos brutos. Por que mudar a regra do jogo e ampliar a carga tributária dos trabalhadores? A regra já em vigor deve ser mantida para garantir um tratamento isonômico entre trabalhadores de ocupações similares.
Em segundo lugar, a proposta cria uma política regressiva para o trabalhador, na contramão de todos os esforços que o governo vem fazendo para a construção de um sistema tributário mais justo, como, por exemplo, na revisão da tabela do imposto de renda. Ao estabelecer um salário de contribuição superior para o entregador, em comparação com o motorista, na prática a proposta fará quem ganhe menos pagar mais.
Por último, a Abrasel teme a perda de uma oportunidade de pensar, de forma inovadora, em um sistema de previdência que se adapte a essa nova forma de trabalho. Não é esperado, e nem será, que todos os trabalhadores intermediados por aplicativos alcancem o salário mínimo de contribuição para a previdência, em função do caráter de complementação de renda dessa atividade e do tempo trabalhado nesse tipo de ocupação.
Essa é uma premissa que não se pode desconsiderar, caso a intenção do governo seja efetivamente garantir que entregadores que atuam via plataformas se aposentem e acessem os benefícios de proteção de renda decorrentes da previdência. Caso contrário, o trabalhador será excessivamente taxado, sua renda será reduzida e não haverá a esperada e necessária inclusão previdenciária.
Por fim, e não menos importante, uma carga tributária excessiva imposta às empresas inevitavelmente será repassada para restaurantes e consumidores, com custos também para o trabalhador. Resultados? 1) Diminuição de postos de trabalho, já que, com as novas regras, muitos trabalhadores deixarão as plataformas; 2) Aumento de postos informais de trabalho, fazendo cair por terra o esforço de proteção social da regulação; 3) Diminuição da capacidade de atendimento dos restaurantes por falta de oferta de serviço; 4) Diminuição do número de pedidos de delivery por plataformas, em função do aumento das taxas de entrega, com efeito negativo sobre o faturamento dos restaurantes; 5) Redução de postos de trabalho formais em bares e restaurantes, pois com demanda e faturamento menores, estes estabelecimentos também verão diminuída a sua capacidade de contratação de um trabalhador CLT, com jornada integral.
Uma boa regulação, portanto, é aquela que também preserva a existência e estimula o crescimento da economia. Desconsiderar seus efeitos na cadeia traz o inaceitável risco de que ela maltrate ainda mais o setor de bares e restaurantes, que luta para se recuperar dos efeitos da pandemia da Covid-19 e que ainda tem mais de 50% dos seus estabelecimentos operando sem lucro e padecendo de enorme endividamento.
*Paulo Solmucci, Presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel)
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