O conservadorismo que saiu das urnas e encontrou guarida no Congresso Nacional começa a dar sinais de articulação política. O sinal mais recente veio da Comissão de Previdência e Assistência Social da Câmara dos Deputados, que, na terça-feira, aprovou projeto que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A união estável homoafetiva foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, mas os parlamentares se articularam para aprovar a proposta, chancelada por 12 votos favoráveis e cinco contrários.
Mais do que afrontar uma decisão da Suprema Corte, os integrantes da comissão da Câmara desenterraram conceitos e termos eivados de preconceito e desinformação, que remetem a uma mentalidade incompatível com a realidade de 2023. No documento, parlamentares tratam a opção pelo mesmo sexo como uma doença. A palavra, diga-se, aparece cinco vezes no relatório elaborado pelo deputado Pastor Eurico (PL-PE). O termo homossexualismo foi usado outras três. Mais: no relatório, os filhos de casais homoafetivos "são privados do valor pedagógico e socializador da complementariedade natural dos sexos no seio da família".
Trata-se de argumento claramente derrubado pelo entendimento do STF. Em seu voto, o ministro Luiz Fux sustenta que "O que faz uma família é, sobretudo, o amor — não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo". E assevera os limites do Estado sobre os direitos individuais, com citação ao jurista Ernst Benda. "Está vedado ao Estado distinguir os indivíduos em função de seu presumido valor moral. O Estado não se deve arrogar o direito de pronunciar um juízo absoluto sobre os indivíduos submetidos a seu império. O Estado respeitará o ser humano cuja dignidade se mostra no fato de tratar de realizar-se na medida de suas possibilidades", escreveu o ministro do STF.
É improvável que a proposta aprovada na terça-feira avance em outras comissões do Congresso ou que será aprovada nos plenários das duas casas legislativas. Além de a maioria de deputados e senadores não compartilharem de tal visão, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já avisou que o projeto que veda o casamento entre pessoas do mesmo sexo é inconstitucional. Há a possibilidade, ainda, de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetar tal proposição.
É importante deixar claro que nada mudou em relação ao que foi estabelecido pelo Supremo em 2011. Todas as relações previstas em lei continuam protegidas. O Brasil deu passos relevantes ao validar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Garantiu direitos a inúmeras pessoas que cumprem com seus deveres, inclusive, o de pagar impostos. Não há como aceitar a classificação de cidadãos de segunda ou terceira classe apenas por causa da orientação sexual. Até porque a escolha de um parceiro ou parceira é, única e exclusivamente, um ato individual.
Diante de preocupante iniciativa dos parlamentares refratários a conquistas consagradas nas sociedades mais modernas, convém manter a vigilância em favor de direitos adquiridos por todos os cidadãos. O Congresso tem o dever de debater temas de interesse público, desde que representem, de maneira inequívoca, avanços para a sociedade, e não retrocessos.