Ninguém governa um país como a Rússia por mais de duas décadas sem alguns méritos. Um dos principais do presidente Vladimir Putin, no poder desde 1999, certamente é a esperteza. Emperrado na guerra contra a Ucrânia desde fevereiro do ano passado, ele aproveitou que os olhares do mundo se voltaram para o conflito entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, para passar quase despercebido na sua estruturação do próximo estágio de sua disputa contra o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.
Na última quarta-feira, a Câmara Alta do parlamento russo — equivalente ao Senado — aprovou, por unanimidade, com 156 votos a favor, a retirada da Rússia do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT, na sigla em inglês). Inicialmente, o objetivo do tratado era proibir testes e explosões de armas atômicas, após mais de 2 mil detonações realizadas pelos Estados Unidos, pela então União Soviética e por outras potências durante a Guerra Fria (1947-1991). O acordo foi firmado em 1996 e aprovado pelo parlamento russo em 2020. Já o congresso norte-americano nunca chegou a votar o projeto.
A medida se soma às diversas rupturas dos acordos sobre armas atômicas entre Moscou e Washington desde o início da guerra na Ucrânia. Putin já havia retirado, em fevereiro, a Rússia do tratado de desarmamento New Start, que limitava os dois países a 1.550 ogivas nucleares prontas para lançamento, e permitia até 20 averiguações nos territórios uns dos outros. Desde o início do New Start, em 2011, russos e norte-americanos haviam realizado 328 inspeções, que foram suspensas.
Tentar antecipar o que Putin pretende com todos esses movimentos não é simples, mas o recado está sendo dado: com a retirada da Rússia de todos os acordos nucleares, o país, em tese, ficaria desimpedido para usar as chamadas armas táticas, menores e projetadas para aniquilar alvos inimigos em uma área específica, sem gerar uma dispersão ampla de radioatividade.
As armas nucleares táticas mais compactas podem ter um rendimento de até um quiloton. O número equivale a 1.000 toneladas de explosivos TNT, enquanto as maiores podem chegar a 100 quilotons. Já as chamadas armas nucleares estratégicas, substancialmente maiores, têm poder de destruição de até 1.000 quilotons. Para fins de comparação, a bomba atômica que os Estados Unidos utilizaram em Hiroshima, em 1945, tinha um poder de 15 quilotons.
No campo de batalha ucraniano, o uso desse tipo de arma, menor e mais precisa, pode representar o ponto de virada que a Rússia precisa para avançar pelo território do país vizinho e derrotar o exército de Zelensky.
Obviamente, caso uma escalada na guerra ocorra, haverá alguma reação dos outros países. Mas a Rússia já vem sofrendo sanções — como a retirada do sistema financeiro Swift, mecanismo de pagamentos e transferências bancárias internacionais — e sendo isolada do resto do planeta desde que invadiu a região ucraniana de Donbass e iniciou o conflito atual.
Caso uma bomba tática exploda em Kiev, fica difícil imaginar o que mais a comunidade internacional poderia fazer para punir o regime de Moscou. Como a Ucrânia não é parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), é pouco provável que os países ocidentais decidam entrar em campo para defendê-la.
A sensação de que Putin ficará impune, mesmo se decidir usar armas nucleares, é reforçada pela paralisia que a Organização das Nações Unidas (ONU) demonstra no caso da guerra entre Israel e o Hamas, com a imensa ressalva de que a Rússia tem assento permanente e poder de veto no Conselho de Segurança da entidade.
Por isso, os movimentos de Putin, enquanto o mundo se preocupa com a situação na Faixa de Gaza, e a mera possibilidade do uso das armas táticas no campo de batalha, geram apreensão. A situação não apenas deixa a Ucrânia em uma posição vulnerável, mas também levanta preocupações para o resto do mundo. Por enquanto, a única certeza é que a escalada de Putin na guerra cria uma atmosfera de tensão e medo que ainda vai merecer muita atenção — e cuidado — da comunidade global.
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