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Trânsito

Artigo: Eixão, nem uma morte a mais

As mortes no Eixão (da Morte) podem ser colocadas na conta do uso de um de seus elementos estruturais. Friso: uso, não configuração

Opi 2610 -  (crédito: Caio Gomez)
Opi 2610 - (crédito: Caio Gomez)
Frederico de Holanda, PhD em arquitetura e professor emérito da UnB - Opinião
postado em 26/10/2023 06:00

Quem disse que a história não se repete? Sim, repete-se, não como farsa, mas como perversidade crescente ante eventos anteriores — pois perversa é a morte de mais um pedestre no Eixo Rodoviário de Brasília, codinome Eixão da Morte. Por que não cai a ficha entre os detentores do poder de mudar as coisas em Brasília? Isto é, mudar o que é ruim e cuja manutenção agride o bom senso. Não. Não só. Mata. Escusado repetir que Brasília é das maiores — ou a maior, sem favor — realização da arquitetura moderna na escala da cidade, no mundo. Ninguém lhe tirará esse crédito.

Mas não o é pelo fato de ter uma via assassina, em sua feição atual. Como tem. As mortes no Eixão (da Morte) podem ser colocadas na conta do uso de um de seus elementos estruturais. Friso: uso, não configuração. Transformações urbanas nem sempre soam ser morfológicas, nem sempre implicam interferir na forma da cidade, na sua materialidade física, na sua sintaxe. No caso, a mudança é semântica — com licença do uso de palavra tão controversa. Semântica, no caso, são normas que se superpõem à forma, regras de uso e apropriação que não referem a fisicalidade do lugar. Por favor, não toquem na materialidade do Eixão!

Consagrou-se que Brasília é constituída por quatro "escalas", na verdade, partes da cidade com personalidade distintiva, como Lucio Costa a concebeu: a residencial, a monumental, a gregária e a bucólica. Pois o Eixo Rodoviário é um dos dois elementos estruturadores que conferem coesão a essas partes — o outro é o Eixo Monumental. Os dois "eixos" (e aquelas escalas — ou bairros) contribuem para a imagem da cidade que formamos em nossa cabeça, eles são uma bússola pela qual navegamos a urbe — por seu comprimento, sua largura, e, no caso do Eixão, a suave curva que indica estarmos próximos ao coração da metrópole. Carros a 80 km por hora (somente no ponto dos radares!), em fluxo ininterrupto por 12,4km, são outra coisa, não têm a ver com o papel que a configuração do lugar representa. São uma forma brutal de sua apropriação.

As pessoas que cruzam o Eixão da Morte na superfície não são suicidas — como querem fazer crer os mais entusiasmados defensores do status quo ("irresponsáveis" é o mínimo que admitem). As trabalhadoras e os trabalhadores desprovidos dessas máquinas, aqui, mortíferas, sabem o risco de enfrentá-las. E assim mesmo o fazem. Se um fenômeno é recorrente — como a tragédia que ora se repetiu — urge perguntar de sua lógica, incluindo, necessariamente, a natureza do lugar onde ocorrem.

A pressa ou o conforto para minimizar distâncias regem as formas mais naturais de usar a cidade — que tem de responder amigavelmente. Daí, não usar as incômodas, demasiadamente espaçadas, infectas, perigosas (por outras razões) passagens subterrâneas, e arriscar-se na superfície. Pois que se trate essa superfície! Que se refreie a sanha de sua apropriação (quase) exclusiva pelos bólidos, mediante semáforos, passagens de pedestres em nível, canteiro central, e se a priorize aos caminhantes.

Os defensores da situação atual também arguem o tombamento da cidade como Patrimônio Cultural da Humanidade — transformar, ainda que semanticamente, o Eixo Rodoviário seria ferir aquele estatuto. Novo equívoco. Brasília é tombada por sua magnífica configuração, não pelos padrões de uso dos seus espaços. Decerto a capital foi concebida à luz do "rodoviarismo" imperante nos anos de 1950: o grande impulso aos carros como mobilidade importante da cidade, calcado na indústria automobilística nascente no Brasil de então. Contudo, alçar esse tipo de mobilidade à condição de um de seus traços essenciais é mais que um erro: é ignorar a contribuição central de Lucio Costa ao remar contra a corrente funcionalista da arquitetura moderna, reinserindo a monumentalidade na escala da cidade, conferindo a Brasília a enorme força simbólica que tem — como, aliás, nenhuma outra proposta do Concurso do Plano Piloto de Brasília, do qual foi o vencedor, teria alcançado.

Quase 12 anos atrás, em 6 de dezembro de 2011, publiquei um artigo neste Correio Braziliense intitulado O rei está nu! sobre o mesmo tema. No dia seguinte, Conceição Freitas repercutiu o artigo e escreveu ao final: "Será que nos anos 2020 o Eixão continuará matando brasilienses sem que ninguém com suficiente coragem e determinação tenha feito algo para romper esse ciclo de tragédias? É bem provável que sim". Estamos em 2023. Além da excelente jornalista que é, apaixonada (como eu) pela cidade, Conceição revelou-se tristemente profeta: sim senhor, a resposta é "sim!".

 


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