Foi objeto de pregações nos templos católicos, no último domingo, a passagem bíblica na qual fariseus e herodianos questionaram Jesus se os judeus deveriam pagar impostos de acordo com a lei romana ou seguir as escrituras sagradas.
Uma capciosa pergunta que visava a enredar Jesus, opondo-o ao povo ou aos romanos, conforme sua resposta. Onisciente, o Mestre percebeu a armadilha. Solicitou ao grupo um denário (moeda de larga circulação à época no Império Romano) antes de responder-lhes.
Quando lhe apresentaram a moeda com a imagem do imperador de Roma cunhada em uma das faces, estavam violando as próprias convicções religiosas. Ora, se rejeitavam o domínio romano, por que usavam uma moeda idólatra?
Olhando-os firmemente, Jesus admoestou-lhes: "Hipócritas! Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus." A sabedoria do Filho antecipou o conceito de Estado laico, uma estrutura político-social que não deve recorrer a dogmas religiosos para resolver questões práticas do cotidiano.
Pessoas que vivem e usufruem de um mesmo território naturalmente devem pagar impostos para que os governantes possam implementar políticas públicas em benefício dos grupos.
Devem estar sujeitas a leis justas e obrigadas a cumpri-las, única forma de garantir justiça imparcial e equitativa diante de posições sociais antagônicas. Têm o direito de escolher livremente seus representantes por meio de um processo eleitoral amplo e transparente que vise a buscar paz e bem-estar sociais.
No entanto, estamos vivendo sombrios tempos em que o Filho levantaria a voz e diria mais uma vez: Hipócritas! Sob a aparência de retidão de caráter, alguns políticos de direita usam a religião para se apresentarem como defensores da ética e da moralidade. Sob a aparência de equidade social, alguns políticos de esquerda usam a religião para se apresentarem como paladinos dos oprimidos.
Os primeiros se ajoelham diante dos refletores, buscando o melhor ângulo para a imagem a ser compartilhada nas redes sociais, mas desconhecem até mesmo os Dez Mandamentos. Os segundos se ajoelham diante dos refletores, com o mesmo propósito midiático, mas nunca estiveram nem perto da favela dos alagados.
Direita e esquerda são conceitos originados ao final do século 18, logo após a Revolução Francesa. Na Assembleia Nacional Constituinte, os simpatizantes da revolução, conhecidos como jacobinos, sentaram-se à esquerda da mesa, enquanto os defensores do rei e da Igreja Católica, conhecidos como girondinos, ficaram à direita.
Em geral, o conceito de esquerda está associado a mudanças na estrutura social vigente, enquanto o de direita está relacionado a sua conservação. Com o passar do tempo, essas variações políticas foram se ampliando e, hoje, basicamente, se encaixam em três vertentes, incluindo também os aspectos econômicos pela influência do Estado (abstenho-me de tratar dos extremos).
A esquerda preconiza atuação estatal para reduzir a desigualdade social e controlar a economia. A direita valoriza a liberdade de empreender, enquanto estimula a atuação estatal na proteção de valores. O centro, oscilando entre a direita e a esquerda, captura tendências de ambos os polos.
Recomendo, como leitura sobre essas inflexões cognitivas, o livro de Norberto Bobbio Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política (Editora Unesp, 2012).
É importante não mergulhar em maniqueísmos inflexíveis, tão comuns em nossos dias. Há pessoas liberais na economia e conservadoras em questões sociais. Assim como há pessoas conservadoras na economia e liberais em questões sociais.
Vê-se que não há correspondência entre ser de direita ou de esquerda, conservador ou liberal, e ser ateu, agnóstico ou seguidor desta ou daquela religião.
Em um Estado laico, afastado da religião, esses rótulos de direita ou esquerda se baseiam em conceitos econômicos e posições políticas. Fé e política não devem se misturar. A fé vem do céu, a política, da terra.
Todavia, os fariseus modernos estão por aí. Se eles persistirem em associar a fé a fins políticos, para desmascará-los, devemos, como sociedade, solicitar-lhes o denário que carregam escondido e, com a moeda à vista comprovando a desfaçatez, em seguida, chamá-los de hipócritas.
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