Rodrigo Ramthum - A cena se passa em um bar num vilarejo inóspito. Todos bebem e conversam animadamente, até que um forasteiro entra no recinto e faz-se silêncio completo. Lá do fundo, um sujeito com cara de poucos amigos e uma grande cicatriz no rosto grita para o desconhecido: "O que você faz por essas bandas?" Pronto. Já estão definidos o mocinho e o bandido nessa história. Se, hoje, ela soa absolutamente clichê (e, de fato, o é), é porque a narrativa cinematográfica evoluiu sobremaneira nas últimas décadas.
Ainda nos primórdios do cinema, D. W. Griffith (1875 - 1948) estabeleceu grande parte dos cânones técnicos do ofício, mas é fato que a complexidade das histórias se desenvolveu em um ritmo acelerado no cinema moderno. Não é propósito deste artigo esgotar as diversas razões para esse fenômeno, que passam, por exemplo, por movimentos como a Nouvelle Vague, entre outros, e até mesmo pela evolução dos meios de comunicação e da internet, que levaram a expressão 'multimídia' a um novo patamar. O fato é que, hoje, temos verso, multiverso, personagens multifacetados (round characters, em inglês), arcos não lineares etc.
Se, por um lado, as plateias ficaram mais exigentes e não compram mais tramas simplórias e personagens unidimensionais (flat characters, em inglês), essa mesma sofisticação muitas vezes não é observada na vida real quando nos deparamos com questões absolutamente complexas, tais como uma eleição presidencial, um julgamento envolvendo disputas agrárias ou, ainda, uma guerra entre países. Para grande parte, tudo isso pode ser resumido entre mocinhos e bandidos.
O novo conflito entre Israel e o grupo palestino Hamas é mais um exemplo dessa dicotomia rasa. Em questão de dias, mais de 4 mil pessoas já morreram, incluindo incontáveis civis inocentes, e é certo que esse número está subnotificado, uma vez que muitas vítimas ainda estão desaparecidas embaixo de escombros, especialmente na Faixa de Gaza. Também é incerto o número de reféns israelenses e estrangeiros. Um cenário desolador que pode ficar ainda mais grave com uma eventual escalada do conflito e entrada de outros países.
Em situações como essa, a velha frase, por vezes atribuída ao dramaturgo grego Ésquilo, sempre vem à tona: "Em uma guerra, a primeira vítima é a verdade." Por óbvio, é fundamental uma análise mais apurada da cobertura da imprensa mundial, que pode, sim, incorrer em erros ou mesmo agir de maneira tendenciosa. Não menos importante é debater as posições de cada governo sobre o conflito e também de organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), buscando compreender os interesses de cada um desses atores.
Senso crítico é, segundo o dicionário Michaelis, a "faculdade de julgar com imparcialidade, sensatez e discernimento". Ceticismo, ainda de acordo com a mesma publicação, é uma "corrente de pensamento segundo a qual o espírito humano não pode ter certeza absoluta de alcançar a verdade e deve abster-se de julgar". O primeiro é importante; já o segundo é perigoso e pode levar a uma acomodação em nossa zona de conforto.
Ao adotarmos uma postura extremamente cética, nos apegamos às nossas idiossincrasias, considerando apenas aquilo que reforça o que já acreditamos. No X (antigo Twitter), utilizado por muitas pessoas como fonte de informação, é possível identificar quem sequer conseguiria apontar no mapa a região do Oriente Médio (ou Levante, como preferem alguns especialistas) emitindo veredictos sobre a guerra, reproduzindo desinformação e espalhando preconceito. Fuja dessa armadilha.
Leia, pesquise a história, busque análises diversas e produzidas por quem de fato tem credenciais, converse com pessoas de confiança, enfim, dê a medida certa de profundidade ao tema. Felizmente, a vida não se resume a um 'Fla x Flu' ou a um 'mocinho contra bandido'. O caminho não é fácil, mas vale muito a pena e pode ser gratificante e até mesmo prazeroso, tal qual assistir a um bom filme.
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