Nos últimos meses temos acompanhado a divulgação de matérias em prol da “regulamentação do cigarro eletrônico”, fomentadas pela retórica da indústria do tabaco, nos mais diversos veículos de comunicação. É o caso do recente artigo da senadora Soraya Thronicke, declaradamente a favor da liberação do comércio desses produtos. Os argumentos trazidos pela parlamentar são conhecidos pelas entidades de saúde e pelo movimento de controle do tabaco/nicotina, porquanto familiarizados com as falácias historicamente propagadas pela indústria. O fato é que o Brasil, com sua exemplar luta contra o tabagismo, reduziu de 35% para 9% a proporção de fumantes na população, por força do compromisso do Ministério da Saúde e sociedades médicas, nos últimos 30 anos, e não se pode por em risco essa conquista.
Cabe esclarecer que, diferentemente do que é relatado pela senadora, os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) são regulamentados no país: são proibidos pela Resolução n°46 de 2009 da Anvisa. E assim devem permanecer, a bem da proteção da saúde. Reconhecemos que a falta de fiscalização no país permite que, mesmo proibida a comercialização, se tenha fácil acesso a esses produtos, sendo crianças e adolescentes, as novas vítimas da dependência de nicotina e pacientes de graves quadros respiratórios, cada vez mais frequentes.
É consenso entre especialistas que a indústria do tabaco seja responsável por causar mais de 60 tipos de doenças e 12% dos óbitos no mundo, segundo estimativas da OMS. O uso desses dispositivos desencadeou até mesmo o surgimento de uma nova doença, denominada Evali (Doença Pulmonar Associada aos Produtos de Cigarro eletrônico ou Vaping), que causa fibrose e outras alterações pulmonares, pode levar o paciente à UTI, ou mesmo à morte, em decorrência de insuficiência respiratória.
A ideia de que o cigarro eletrônico é menos prejudicial e seria um estágio para auxiliar dependentes do cigarro convencional a parar de fumar é equívoca. Isso porque a nicotina, que gera a dependência, é o atrativo, de par com as centenas de outras substâncias que compõem esses dispositivos, muitas das quais não divulgadas pelos fabricantes. Estamos assim a criar novas legiões de dependentes. Há evidências de que os cigarros eletrônicos contenham mais de 2.000 substâncias, a maioria delas desconhecidas pelos usuários, não usuários e até pelos cientistas.
É falsa a informação que a utilização de DEFs no país quase quadruplicou em quatro anos. Toda a publicidade para a venda desses produtos, com pirotecnia de cores e sabores, não têm como alvo os dependentes do cigarro tradicional, mas sim um novo mercado consumidor composto principalmente por jovens, adolescentes e até mesmo crianças. No Brasil, entre estudantes de 13 a 17 anos, 16,8% já experimentaram cigarro eletrônico, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense), que contempla o período de 2009 a 2019.
A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 revela que 2,4% dos indivíduos com menos de 25 anos no Brasil fazem uso de cigarros eletrônicos. Considerada a população total de 15 anos ou mais, a taxa de uso de DEFs é de 0,6%, o que representa cerca de 1 milhão de pessoas, sendo aproximadamente 70% jovens de 15 a 24 anos, totalizando cerca de 750 mil jovens.
A justificativa de liberar o comércio desses produtos, em prol da geração de empregos e maior arrecadação de impostos (meio bilhão de reais) não considera o déficit de R$ 125 bilhões aos cofres públicos, com gastos diretos e indiretos apenas para sanar problemas de saúde decorrentes do tabagismo, conforme o relatório do Instituto de Educação e Ciências em Saúde (IECS 2020). A liberação também não minimizará a entrada ilegal desses produtos, uma vez que até mesmo os cigarros tradicionais são contrabandeados para o país. Só em 2022, foram apreendidos e destruídos pela Receita Federal mais de 5.300 toneladas de cigarros, o equivalente a 180 milhões de maços, ou ainda 24 mil m3 do produto. Em 2020, segundo o INCA, 49% dos cigarros consumidos no país, eram contrabandeados.
Recentemente a Academia Nacional de Medicina publicou contundente parecer contra qualquer liberação desses produtos. Como médicos e cidadãos, entendemos ser dever do Estado, consagrado na Constituição de 1988, proteger as pessoas da exposição a aditivos tóxicos e cancerígenos e informá-las sobre os riscos inerentes. Os únicos interessados na liberação do comércio de cigarros eletrônicos são a indústria e seus aliados. Por isso, reiteramospela manutenção da Resolução n°46 de 2009 da Anvisa, que vem cumprindo seu mandato institucional de promover a proteção da saúde da população brasileira. A obrigação dos legisladores também deveria ser zelar pela saúde pública. Ainda há tempo para a Senadora optar por proteger a população a que jurou servir.
*MARGARETH DALCOLMO, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e Membro Titular da Academia Nacional de Medicina (ANM) e PAULO CORRÊA, coordenador da Comissão de Tabagismo da SBPT.
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