Certa vez, um aluno me fez a seguinte indagação: "Professora, mas o garantismo pode salvar os negros? Ferrajoli é um homem branco e europeu. De que forma a sua teoria pode combater o racismo?". Eu respondi: "O garantismo é uma teoria do direito e da democracia e, desde esse lugar, é a ferramenta ideal para afirmar a necessidade de controle de poder de maiorias sobre minorias, por meio da aplicação intransigente da Constituição". Na sequência, aconselhei a leitura do livro Democracia y Garantismo (Madrid: Editorial Trotta, 2008), especificamente o item "o racismo institucional", no qual Luigi Ferrajoli, jurista italiano, que formatou a teoria do garantismo, combate as chamadas "políticas de morte".
Ainda dei um exemplo bastante prático: na condição de promotora de Justiça, eu já me manifestei pelo arquivamento de inquéritos policiais nos quais o indiciado era um jovem negro, preso "em flagrante" por crime de tráfico de entorpecente, a partir de "atitudes suspeitas", ou "denúncias anônimas". Tais procedimentos violavam, frontalmente, a Constituição, já que, em sua grande maioria, implicavam o uso de provas obtidas por meio ilícito, apelando, claramente, para um modelo de Direito Penal de autor. Ou seja, utilizando o garantismo como ferramenta teórica, eu evitava — ao menos naqueles inquéritos que até mim chegavam — que um número expressivo de jovens negros permanecesse preso ou fosse processado. O garantismo, de certa forma, salvou muita gente.
Recentemente me perguntaram se o garantismo pode salvar a Amazônia. A princípio, a pergunta me causou certa perplexidade, mas concluí que fazia total sentido, especialmente levando em conta o mais recente trabalho de Luigi Ferrajoli, Per una Costituzione della Terra: l'umanità al bivio (Milano: Feltrinelli, 2022).
Explico-me: Luigi Ferrajoli está para muito além do garantismo penal. Em seu capolavoro, intitulado Principia Iuris, ele esclarece que existe o garantismo penal, o civil, o patrimonial, o social e o planetário (internacional ou global); cada qual operando a partir de uma lógica própria, porém conectados pela máxima de que todo poder tende ao abuso e, por isso, precisa de limites, controle, constrangimentos.
Isso me faz chegar a um postulado caro ao garantismo: a necessidade de se diferenciar democracia formal (movida pela regra de maioria) e democracia material (movida pela defesa intransigente dos direitos fundamentais de todas as pessoas). E por que isso importa? Na verdade, não só importa, como é a chave para se afirmar que o garantismo pode, sim, ser um instrumento extremamente preci(o)so para — se não salvar — tutelar a Amazônia, enquanto bioma, e os povos que habitam suas florestas e suas águas. Ferrajoli adverte: "A humanidade se encontra diante de emergências globais que colocam em perigo a sua própria sobrevivência".
Dentre essas emergências, o professor italiano menciona o aquecimento global. E diz mais: estamos chegando a um "point of no return". Não bastasse a biodiversidade, esse rico território guarda culturas e saberes originários dos povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhas, povos tradicionais, que mantêm, com a natureza, uma relação ancestral. Estamos falando, assim, de muita coisa!
Há um dado da realidade que precisa ser destacado: esses povos são submetidos a violências de toda espécie. Os territórios tradicionalmente ocupados por eles, são constantemente invadidos, desmatados; e são frequentemente contaminados ou degradados por meio de processos produtivos insustentáveis, comprometendo a saúde e a vida dessa população. Na região amazônica, é conhecida a gravidade dos conflitos no campo, em que povos indígenas sofrem ataques e violações praticados pelos "poderes selvagens", para usar a feliz expressão de Luigi Ferrajoli.
O garantismo, portanto, ao clamar pela efetividade das chamadas instituições de garantias (que objetivam à defesa dos direitos de todos) mostra-se como um importante aliado na proteção — não somente da Amazônia — mas, sobretudo, dos povos que nela habitam. O garantismo não se faz somente com a regra de maioria. O Garantismo só estará satisfeito quando a tutela dos direitos de todos os seres humanos for assegurada, ainda que contrariando a opinião de muitos.
Sem a defesa dos povos indígenas, das comunidades tradicionais, de tudo o que nos constitui como nação, incluindo a cultura ancestral, a floresta, os rios, as águas, jamais conseguiremos falar plenamente em democracia.
ANA CLAUDIA PINHO, Promotora do Ministério Público do Pará e professora-adjunta de Direito Penal da Universidade Federal do Pará
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