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PEC DO PLASMA

Artigo: Se querem vender nosso sangue hoje, o que nos aguarda o amanhã?

A flexibilização da política de sangue e hemoderivados pode ferir a soberania nacional e abrir precedentes para comercialização irrestrita de tecidos humanos

Exame de sangue -  (crédito: Hush Naidoo Jade Photography/Unsplash)
Exame de sangue - (crédito: Hush Naidoo Jade Photography/Unsplash)
postado em 09/10/2023 06:00

FÁTIMA DE SOUSA, professora associada do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília

A Proposta de Emenda à Constituição nº10/2022, conhecida como PEC do Plasma, pretende retirar da Constituição Federal a garantia de que a coleta, manipulação e distribuição de sangue e seus derivados, como o plasma humano, seja de caráter exclusivo do estado. Caso seja levada a cabo por interesses de mercado, representa um retrocesso de décadas, desconsiderando uma luta histórica e a superação de um passado amargo.

Trata-se de uma volta ao passado, que vai de encontro ao Sistema Único de Saúde e a Constituição Federal de 1988, que traz em seu artigo 199 a vedação da comercialização do sangue e seus derivados. O sangue humano ao longo da década de 1970, era uma mercadoria como outra qualquer, sendo armazenada por bancos públicos e privados, que na maioria das vezes não mantinham padrões laboratoriais de coleta, armazenamento e manuseio desse material.

Mais que isso, não eram raros os episódios de contaminação por sífilis, hepatites e outras doenças devido a falta de análise e fiscalização para detecção de doenças. A venda de sangue ficava reservada para as populações mais vulnerabilizadas, que faziam do próprio corpo matéria prima de sobrevivência frente à desigualdade e falta de acesso. Cerca de 70% do sangue coletado e armazenado eram provenientes dos bancos de sangue privados

A pandemia de Aids nos anos 1980 impactou fortemente essa estrutura de comércio de sangue, já que milhares de pacientes se contaminaram com o vírus a partir desse cenário, acendendo o alerta nos movimentos de reforma sanitária sobre a necessidade de uma política de Estado para o sangue e seus derivados. A garantia da não comercialização do sangue, assim como de nenhum outro tecido humano, foi uma vitória do Movimento Sanitário Brasileiro, que pela ação de diversas forças e atores resguardaram a população de interesses de mercado, primando na Constituinte pela soberania nacional ao delegar à Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia o controle e processamento de sangue humano.

O retrocesso representado pela PEC 10 vem sendo objeto de preocupação de entidades e movimentos ligados à saúde pública e defesa do SUS. O Conselho Nacional de Saúde chamou atenção para os perigos da PEC desde o início de sua tramitação, fazendo uma recomendação em abril de 2023 ao Congresso Nacional pelo arquivamento da PEC, e para o Ministério da Saúde, pelo fortalecimento da Hemobras. Uma moção de repúdio à PEC também foi deliberada por milhares de pessoas na 17ª Conferência Nacional de Saúde, em julho deste ano.

Entidades representantes da gestão estadual e municipal do SUS, Conass e Conasems, também emitiram nota manifestando suas preocupações para a assistência e disponibilidade dos insumos caso a proposta avance no Senado. Já a Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), a Associação Brasileira de Talassemia (Abrasta) e a Associação dos Servidores da Anvisa (Univisa), chamam atenção em nota para o impacto em toda a Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados, assim como para segurança, tanto do doador como do paciente.

O desarranjo nos abastecimentos via doações voluntárias será inevitável nesse cenário que a PEC 10 pode desencadear. Um mercado privado de sangue coloca em risco a disponibilidade dos insumos para acidentados e doentes, mais que isso, pode abrir precedente para o comércio de órgãos e tecidos humanos, gerando mais exclusão entre os que podem ou não pagar pelo serviço, ferindo os princípios doutrinários do SUS.

O projeto segue agora para votação no plenário do Senado, e em um ambiente de parlamentares bem divididos sobre os impactos da medida, necessitando de no mínimo 49 votos em dois turnos para ser aprovado. Cabe à sociedade civil organizada e às entidades de defesa do SUS o convencimento de senadores e senadoras dos retrocessos em vista. Talvez o resgate sobre o direito à saúde em tempos não tão longínquos nos ajude a trazer lucidez sobre a importância de manter o tema como previsto em Constituição.

 

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