As relações trabalhistas que imperam na lógica dos aplicativos de entrega e de transporte, como a Uber, são frágeis e precárias. Neste novo modelo promovido por essas empresas de tecnologia, o profissional presta o trabalho conforme a demanda surge no celular. Os motoristas e entregadores enfrentam longas jornadas de trabalho, que chegam a 17 horas por dia, muitas vezes em situações de trânsito estressantes. Arcam com todos os riscos inerentes à atividade e não possuem nenhuma garantia ou direito trabalhista, além de receber pouquíssimo por cada serviço.
Com as sucessivas crises econômicas que o país enfrentou, com destaque para a provocada pela pandemia, muita gente buscou nesses aplicativos uma forma de subsistência. Os números dão a exata dimensão dessa parcela de trabalhadores. Hoje, a Uber tem entre 500 mil e 700 mil motoristas cadastrados em todo o Brasil, segundo a Justiça do Trabalho — a empresa garante que são cerca de 1 milhão. Outros aplicativos, como iFood e 99, têm números tão impressionantes quanto. Para evitar formar qualquer vínculo trabalhista, as empresas vinham alegando que eram meras intermediárias na prestação de serviço. O resultado são inúmeras ações na Justiça questionando o desamparo dos trabalhadores, e paralisações promovidas por parte dos motoristas para chamar a atenção para a baixa remuneração.
A regulamentação dos aplicativos de entrega e transporte foi promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como forma de aproximação desse novo grupo de trabalhadores que se consideram empreendedores e se afastam da lógica tradicional da CLT, e vem sendo discutida há cerca de quatro meses em Brasília, em um grupo que envolve representantes do governo, das empresas, dos sindicatos e dos funcionários. O debate corria bem. Em setembro, os envolvidos chegaram a acordos sobre a remuneração dos prestadores de serviço, incluindo o pagamento pela chamada "hora logada", quando o motorista está ativo no aplicativo, mas não recebeu nenhum chamado, uma das principais reivindicações da categoria e um dos pontos mais sensíveis de toda discussão.
Por isso, não repercutiu bem na imprensa a fala do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, durante uma audiência pública da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados na última quarta-feira. Além de sugerir que os Correios criassem um aplicativo para concorrer com os demais, ele afirmou que, caso a Uber queira sair do Brasil após a regulamentação, o problema seria apenas da empresa. Na sexta-feira, ele se justificou, dizendo que "não falou para a Uber ir embora" e que a gigante do transporte não tem planos de deixar o país — considerado pela companhia como o seu principal mercado, à frente de Estados Unidos (EUA) e União Europeia.
A Uber e as demais empresas envolvidas não se pronunciaram após a fala do ministro, mas fica a torcida para que a situação não jogue por água abaixo o esforço do grupo de trabalho que discute a questão. Afinal de contas, a regulamentação do trabalho por aplicativos é um desafio necessário, que deve ser abordado com seriedade e responsabilidade. Para os trabalhadores, essa é a chance (talvez a única) de negociarem questões de dignidade, como controle de jornada, previdência e proteção social, além da segurança, uma vez que acidentes e lesões são riscos reais nesse setor. E para a sociedade, é uma oportunidade de criar um equilíbrio entre a inovação inegável que essas empresas trouxeram aos seus nichos de mercado e a proteção dos direitos trabalhistas, garantindo benefícios a todos os envolvidos. Que o diálogo siga prevalecendo.
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