CRISTOVAM BUARQUE, professor emérito da Universidade de Brasília
O romance Geração D, de 530 páginas, escrito por Sergio C. Buarque, conta a história dos que lutaram armados contra a ditadura. Tanto quanto Tolstoy em Guerra e Paz, o autor vai além de uma descrição do combate. Ele transmite a alma daqueles jovens e o espírito do tempo, ao longo de quatro décadas, em um roteiro estimulante intelectualmente e sedutor literariamente. Um romance psicológico, de suspense e de política.
Já na abertura, a guerrilheira Renata aceita se prostituir por tarefa do partido, para seduzir um ministro e conduzi-lo ao local onde seria sequestrado. Ela é romântica ao ponto de se apaixonar pelo inimigo, pragmática ao fazer um doutorado em Paris e seguir carreira de sucesso, ainda no governo militar. Mergulhou na revolução, mas não perdeu o controle da sua vida, apesar do alto preço que pagou em remorsos, rejeições e períodos de depressão.
Seu também jovem marido, Maurício, levava o idealismo no coração e a metralhadora na mão. Foi dele a ordem para que a esposa se fizesse amante do inimigo. Preso depois do sequestro, amarga semanas de tortura e anos de prisão. Saiu abatido com o fracasso da luta, carregando remorso pela decisão de colocar o partido e a revolução acima da moral. Tenta a vida em uma comunidade hippie, que abandona ao perceber que se diziam anticapitalistas mas viviam da relação com o sistema e tolerando corrupção na gestão da fazenda. Refugia-se na poesia intimista e na direção de pequena livraria no interior de Minas Gerais. Para ele, nada restou da revolução que sonhou.
Bem sucedidos são aqueles que apenas tangenciaram a luta armada. Um estudante cínico que se transforma em psiquiatra; uma jovem matemática lúcida e um jornalista obsessivo por reportagens. Dos personagens do lado do mal, na política e na polícia, nenhum merece registro maior no livro, salvo o ministro sequestrado, cuja imagem é exemplo da ambiguidade de quem serve à ditadura, mas tem requintes de elegância, cultura, diálogo, solidariedade.
Edith carrega a mensagem do livro. Entrou na guerrilha mais pela aventura e as palavras de ordem do que pela esperança de resultados. Seu comandante e namorado determinou sua ida para treinamento em Cuba, onde ela se desiludiu com o socialismo ao ser tratada como inimiga do regime, por ter se envolvido amorosamente com um general fidelista. Presa grávida, seu filho foi tomado logo no dia do nascimento; refugiada em Paris, depois que o regime cubano foi obrigado a liberá-la por pressão internacional, é rejeitada por seus companheiros, ainda seduzidos e iludidos pela revolução cubana. Deprimida, acaba com a própria vida, em Paris.
Eliseu, seu comandante, simboliza os mais velhos que atraíram idealistas para o suicídio. Quem matou Edith foi a desilusão, tanto o fracasso da utopia pela qual lutou, quanto a falta de nova utopia para substituir a fracassada. Todos mataram Edith, por não lhes dar o oxigênio de uma utopia, e também se suicidaram, embora continuassem com vida.
No final do livro, dois ex-guerrilheiros discutem se deveriam ter aceitado a eleição indireta para conquistar a democracia, ou continuado a luta clandestina pelo fim do sistema capitalista. Dificilmente a vitória da guerrilha teria levado à democracia, porque as armas não respeitam as urnas.
Tanto que nenhum deu continuidade à luta. O único personagem que segue na política é um deputado cheio de chavões e vazio de sonhos, prisioneiro da armadilha de sua própria reeleição, disfarçando a falta de utopia com propostas assistencialistas para tirar os pobres da penúria e votarem nele e seu partido. Os outros nem sequer continuaram na política.
Apesar de sobreviventes, aquela nossa geração D morreu com Edith. Esta é a moral do livro de Sergio C. Buarque, em um romance de alta criatividade literária, pelo número de personagens envolvidos e envolventes, em roteiro que empolga o leitor do início até o final. Um livro que une filosofia, política, sexo e amor, com narrativa de forte suspense. Uma história verdadeira sob a forma de ficção.
Com a qualidade maior que deve ter um bom romance: terminamos de ler querendo mais, tanto continuar lendo, quanto continuar a história. Sergio C. Buarque fica nos devendo a continuação do livro. Quem são os filhos da luta armada, qual a letra colocar no lugar do “D” de desilusão, para a geração que hoje tem a idade daqueles guerrilheiros dos anos 1960 e 1970, sem a louca irresponsabilidade deles e sem o sonho que eles tinham. Para nós, leitores, fica o desafio: que utopia devemos oferecer aos jovens de hoje para atrai-los à luta.
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