DIEGO D. BAPTISTA DE SOUZA, mestre em engenharia de recursos hídricos e ambiental, e presidente da Nova Engevix Engenharia
Depois do calor extremo em julho, em que a temperatura média global esteve 1,5°C acima da era pré-industrial, e em agosto, quando a cidade de São Paulo, por exemplo, registrou sua maior temperatura histórica para o período, agora são as chuvas intensas e os ciclones que vieram informar tempos difíceis no que se refere ao clima. A cidade de Derna, na Líbia, ficou praticamente submersa depois que o ciclone Daniel atingiu o país, provocando o rompimento de duas barragens e quatro pontes.
O aquecimento global gera mais evapotranspiração do solo e das plantas, aumentando, consequentemente, as secas e a umidade no ar. Essa maior umidade e sua convergência dentro de ciclones e tempestades extratropicais e tropicais tem como consequência eventos de precipitação mais intensos. Segundo o IPCC-AR6, cada grau celsius de temperatura a mais na atmosfera corresponde a um potencial de 7% a mais nos eventos de precipitação. Em outras palavras, o aumento da temperatura já mudou e continua alterando o ciclo da água no planeta.
Os desastres trazem preocupação para diversas áreas — e a resiliência das barragens frente aos impactos das mudanças climáticas já é uma preocupação mundial. Um alerta que constou na pauta da Reunião da Comissão Internacional de Grandes Barragens, em junho, em Gotemburgo, na Suécia. Entrou nessa discussão também a crescente importância das barragens em um mundo com mais demanda de água e, ao mesmo tempo, com mais escassez hídrica.
No Brasil, temos pelo menos 10 mil barragens, de pequeno a grande porte. A maior parte construída com base em premissas hidrológicas pré-mudanças climáticas, ou seja, sem considerar os riscos advindos da intensificação dos eventos extremos. A não consideração destes riscos ocorre inclusive em países do primeiro mundo, onde pouquíssimos proprietários de barragem ou órgãos reguladores têm uma estrutura ordenada ou cientificamente defensável para descrever os efeitos das alterações climáticas nas precipitações extremas.
Para o caso de adaptar as barragens às chuvas mais intensas, ações devem ser feitas considerando a direção das mudanças climáticas e as metodologias mais apropriadas para a barragem ou sistema específico. Também deve-se considerar o tamanho e/ou classificação de consequência de uma barragem. É provável que se adote uma ação diferenciada para pequenas barragens em comparação às grandes: as primeiras foram projetadas para critérios mais baixos e podem ser impactadas de forma diferente.
Na prática, isto significa, garantir que as barragens existentes sejam resilientes às mudanças climáticas. Isto demandará investimentos em estudos hidrológicos, considerando análises mais robustas, incluindo verificação de hipóteses de estacionaridade de séries, análises de riscos e cenários das cheias máximas prováveis, e, para muitos casos, obras de adaptação (retrofit), tanto em aumento dos órgãos extravasores, quanto em alteamento das barragens. Soluções mais inteligentes e eficazes de operação também serão necessárias, como melhora do monitoramento e da previsão hidrometeorológica e revisão de regras de operação dos reservatórios.
Considerando o enorme contingente de barragens existentes, isso exigirá um investimento muito grande nas próximas décadas, sendo o próximo paradigma a ser vencido no setor barrageiro brasileiro, que ainda não incorporou em seus planejamentos essa nova condição.
Concomitantemente, às chuvas mais intensas, tem-se o aumento da evapotranspiração e das secas, que, somado à crescente demanda por água potável no planeta, volta a colocar em evidência a necessidade da construção de novas barragens para prover água nos momentos de escassez. De acordo com o World Bank Group, atualmente cerca de 60% da população mundial vive alguma forma de restrição de água e, até 2050, a demanda por água aumentará entre 20% e 30%. Olhando para as últimas décadas, enquanto a população mundial dobrou nos últimos 50 anos, o estoque de água potável no globo reduziu em cerca de 27 trilhões de metros cúbicos. Ou seja, há um ‘gap’ no estoquede água necessário para o bem-estar da humanidade, e todos os indícios apontam que isso só tende a aumentar no futuro.
Enquanto as barragens são ‘demonizadas’ por parcela considerável da sociedade, em função de seus impactos socioambientais, em um futuro próximo, com a escassez e a demanda crescentes por água limpa e potável, aliadas às mudanças climáticas, pode haver um ’renascimento’ dessas estruturas. Elas são catalisadoras da transição energética, tendo em vista suas características únicas, como produzir energia sem emissão de carbono; controlar as cheias afluentes, reduzindo as cotas de inundação a jusante; trazer flexibilidade de despacho aos grids elétricos, garantindo energia de backup para as gerações eólica e solar; bem como armazenamento de água potável, entre outros, como recreação, turismo, irrigação e piscicultura. O futuro levará, necessariamente, à uma reanálise dos atuais trade-offs socioambientais associados às barragens.
Diante deste momento único que lidamos, urge aos fazedores de política e tomadores de decisão considerarem o tema de construções de novas barragens. No passado recente, o governo e o setor falharam em não comunicar corretamente à sociedade os benefícios das barragens. Agora, face ao novo paradigma das mudanças climáticas, essa discussão é imprescindível.
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