Na sua primeira entrevista como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso minimizou divergências e desentendimentos entre a Corte e o Congresso. Manifestou a intenção de dialogar com os demais poderes, especialmente o Legislativo, para superar os impasses. “O que existe, como em qualquer democracia, é a necessidade de relações institucionais fundadas no diálogo, na boa vontade e na boa-fé. E não tenho nenhuma dúvida que isso acontecerá", disse.
Para o novo presidente do Supremo, a Constituição Federal de 1988 cria "sobreposições" de tarefas do Legislativo e do Judiciário. Barroso pretende buscar o diálogo "respeitoso" e "institucional" para superar os desafios. O Congresso tem a palavra final sobre todas as leis, exceto as cláusulas pétreas da Constituição, que são aquelas regras intocáveis da legislação brasileira. Cabe o Supremo a exegese sobre elas, segundo princípio democrático de que quem faz as leis não as interpreta.
Na verdade, as diferenças de entendimento entre o Congresso e o Supremo resultam de contradições existentes na própria sociedade, em que muitas vezes o senso comum começa a ser questionado por minorias cujos direitos civis, como a livre escolha, não podem ser desrespeitados. Muitas vezes, o Congresso não legisla sobre temas polêmicos, o que gera demandas judiciais que acabam resolvidas pelo Supremo, nem sempre de acordo com vontade da maioria dos parlamentares.
Barroso defende a tese de que o Congresso pode, discordando de decisões do Supremo, mudar a legislação constitucional, exceto naquelas questões consideradas imutáveis pelos constituintes. “Em não se tratando de uma decisão sobre cláusula pétrea, o Congresso é no fim quem tem a última palavra”, reconhece. Essa compreensão do presidente do Supremo é uma premissa básica para o diálogo com o Congresso.
Questões candentes hoje acirram as contradições entre o Supremo e o Congresso: o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, aprovado pelo Senado; a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, cuja votação foi iniciada pela ministra Rosa Weber, que agora se aposenta; a descriminalização do porte de maconha para consumo próprio, um tema que se impõe diante do fracasso do sistema de segurança em combatê-lo; o casamento homoafetivo, um dado da realidade, num contexto em que a família unicelular patriarcal se tornou minoritária; a fiscalização do uso de dinheiro público nas campanha eleitorais; e o financiamento das organizações sindicais.
A verdadeira razão dos conflitos é uma profunda mudança de paradigma do funcionamento da ordem jurídica. Até a primeira metade do século 20, admitia-se a supremacia meramente formal da Constituição. Assim, os casos e problemas da vida em sociedade eram resolvidos pela aplicação direta das leis infraconstitucionais. As Constituições funcionavam como vetores incorporados pelo Legislador na construção das regras legais.
Houve radical transformação do direito após a Segunda Guerra Mundial. As Constituições ganharam supremacia, houve uma transformação revolucionária no campo jurídico: a possibilidade e a necessidade de aplicação direta da Constituição, seus valores e princípios, sem uma regra específica na legislação infraconstitucional. Isso ocorre sempre o Legislativo se omite.
O chamado “ativismo judicial”, ou seja, a aplicação da Constituição sem a intermediação do Legislativo, por demanda do cidadão em busca da justiça, gera a fricção entre poderes. Daí a importância do diálogo entre o Supremo e o Congresso, especialmente agora. Ambos se uniram em defesa da democracia nos episódios de 8 de janeiro. Esse é o exemplo de que, respeitada a independência de cada Poder, a harmonia entre eles é necessária e possível.