Doação de órgãos

Artigo: Renascer

O doador saudável, falecido por morte encefálica, pode doar fígado, rins, pulmões, pâncreas, coração, intestino delgado e tecidos. A doação de órgãos salva vidas, multiplica a solidariedade e a gratidão

HENRIQUE ANDRADE,  fundador do Instituto Doando Vida por Rafa e Clara

Dizem que morrer é a única certeza da nossa existência. Para nós, brasileiros, lidar com essa verdade ainda é angustiante. Evitamos falar sobre a finitude. Talvez, por querer acreditar que é possível driblar o inevitável. Não é. Mas, acredite, conversar sobre morte pode multiplicar vida. O Setembro Verde é sobre isso também. O mês marca a campanha de conscientização e debate em torno da doação de órgãos e tecidos para transplante. O doador saudável, falecido por morte encefálica, pode doar fígado, rins, pulmões, pâncreas, coração, intestino delgado e tecidos. A doação de órgãos salva vidas, multiplica a solidariedade e a gratidão. Para ser doador, no Brasil, é preciso abrir o diálogo, conversar com a família sobre o desejo de doar, deixar explícita a sua vontade. Falar sobre a morte, sem tabus. Encarar o fato que ela pode ocorrer a qualquer dia, em qualquer lugar, com quem está vivo.

Há 10 anos, um acidente de carro tirou as vidas de minha filha, Rafaela, e de minha neta, Clara. Rafa morreu na hora. Clarinha ficou dois dias na UTI até a constatação da morte cerebral. Rafaela tinha 26 anos, Clara 2. Vivo o luto desde agosto de 2013. A dor é imensurável, indescritível, dilacerante. Ninguém, absolutamente ninguém, está preparado para o que acreditamos ser a inversão do curso natural da vida. Mas, ela ocorre e, há 10 anos, ainda atordoados com o vazio da partida de nossas meninas, minha família transformou a angústia e a tristeza de três famílias em esperança. Os dois rins de Clarinha salvaram duas crianças. As córneas passaram a ser a alegria de outra que, hoje, enxerga as cores e as belezas do mundo.

Em agosto passado, minha família revisitou a cidade canadense onde minha filha e netinha viviam até o acidente. Encaramos uma mistura de sentimentos. Receio, tristeza, alívio e gratidão se juntaram aos questionamentos que volta e meia me acometem. Tudo ao mesmo tempo. Mas a vida nos traz possibilidades que permitem ressignificar o que é irremediável. Doar é um ato de amor. É fazer o bem não importa a quem. É uma certeza que permanece intacta.

Rafaela era luz. Durante o período no qual amamentou a Clarinha, no Canadá, ela amamentou, simultaneamente, a filha de um casal amigo. Por ironia do destino, o mesmo casal que nos deu a notícia do acidente. O mesmo que esteve conosco, lado a lado, neste retorno. Com sentimentos à flor da pele, nos acolheu com gestos e palavras, nos levou até a pessoa que prestou os primeiros socorros a minha netinha, no local da tragédia. Foi um encontro repleto de emoção. A mulher que socorreu Clara nos revelou que o atendimento a impactou definitivamente. Tanto que, um ano depois, deu à luz uma menina. Clara é o nome escolhido para ela.

Reencontramos também a enfermeira que, há 10 anos, nos comunicou a morte encefálica de Clarinha e perguntou se iríamos doar os órgãos da nossa netinha. Revivemos o sofrimento imensurável e o SIM mais significativo de nossas vidas. O aceno positivo foi possível porque sabíamos que Rafaela era doadora. Conversávamos em família sobre doação de órgãos. Rafa tomaria a mesma decisão. Falar sobre a finitude da vida não apressa o ponto final. Tal diálogo é um caminho para entender que morrer é parte da nossa história, pode ocorrer antes de estarmos preparados. Se podemos salvar vidas doando órgãos, o ciclo se fecha com mais amor, solidariedade, empatia. Falar sobre doação é ressignificar.

Venho ressignificando há dez anos. Todo o amor que entreguei a Rafaela e Clara não morre. Ele me enobrece e floresce. A saudade jamais me abandonará, mas tenho transformado a dor da ausência em luta por um mundo melhor. Rafa era nutricionista, sonhava em amparar crianças desnutridas, em ajudar a erradicar a fome, uma grave endemia no Brasil.

“Não desesperar, mesmo aos pedaços”, dizia dom Helder Câmara. Ao ver que muitos sofrem com a dor da fome, resolvi descruzar os braços. Afinal, a fome ao meu redor afronta a dignidade e destrói possibilidades para 30% da população do meu País. Ela dói em mim. Passei a lutar diariamente para transformar o sonho da Rafaela em realidade. Com nossa família e amigos criamos o Instituto Doando Vida por Rafa e Clara, que acolhe, atualmente, 80 crianças de 2 a 5 anos da região de maior índice de vulnerabilidade social do DF, a Chácara Santa Luzia/Estrutural.

A OSC também fortalece a comunidade com cursos e oficinas em diversas áreas, incentivando o empreendedorismo, preparando adultos para a o mercado de trabalho. É uma luta, muitas vezes, inglória. Quem viveu no descaso a vida inteira, aprende a não acreditar em si. Mas, aos poucos vamos avançando. O assistencialismo, pura e simplesmente, não transforma. A vida é mais desafiadora. Sabemos disso. Então, no Instituto Doando Vida por Rafa e Clara, lutamos para matar todas as fomes. Não basta assistir, é preciso apontar trilhas. Assim como não basta viver, é preciso doar. Amor, solidariedade, dignidade e órgãos. Você é doador? Converse com sua família e doe. Fazer o bem, faz bem!

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