Judiciário

Artigo: Equidade no Poder Judiciário, uma utopia possível

Relatório mostra que há carência da presença feminina na composição de grande parte dos tribunais do país

Josiane Caleffi Estivalet

A naturalização das desigualdades estruturais no Poder Judiciário, no que toca ao gênero e à raça, vem sendo constantemente apontada em diversas pesquisas produzidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e outros órgãos representativos. O Relatório Justiça em Números, deste ano, aponta a carência da presença feminina na composição de grande parte dos tribunais. Em pleno 2023, existem pelo menos três unidades do país que não contam com nenhuma desembargadora mulher: Tribunal Regional de Rondônia (TJRO), Tribunal Regional do Amapá (TJAP) e Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região (TRT, Mato Grosso do Sul).

Os números vêm confirmando a imprescindibilidade de se discutir uma reformulação dos espaços dados a mulheres em todas as esferas de Justiça do país. Por ser a instância máxima do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) é o espaço em que melhor deveria reproduzir a diversidade do Brasil, onde as mulheres correspondem a mais da metade da população. No entanto, as ministras são menos de 20% da corte e em sua história, foram nomeados 168 homens e apenas 3 mulheres, ou seja, menos de 2% das cadeiras. Mulheres negras jamais foram indicadas.

Com a iminência da aposentadoria da Ministra Rosa Weber, um grupo de magistrados e magistradas de todo o país se uniu para defender que a vaga permaneça com a representação feminina, é o Movimento Paridade no Judiciário. Juntos elaboramos uma carta direcionada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva alertando sobre o risco à já singela representatividade feminina no STF. Defendemos que, como um dos Poderes do Estado, que é republicano e democrático, o Judiciário reclama ser composto de forma plural, refletindo a comunidade a que serve e na qual está inserido.

Também estamos em constantes discussões sobre os novos rumos da Resolução nº 255 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário e impõe a adoção de medidas para incentivar a participação das mulheres em cargos de chefia, assessoramento, bancas de concurso e expositoras, em todas as unidades do Poder Judiciário.

Um caminho possível se dá agora pela proposta de alteração da Resolução nº 106/2010 do CNJ, descrita no procedimento nº 0005605-48.2023.2.00.0000, que começou a ser votado pelo conselho, e é a correção de uma lacuna histórica. A proposta é de que, para concorrer às promoções para os cargos de desembargador, se façam listas alternadas, uma para homens e outra para mulheres. Essas listas, de caráter temporário, serviriam de norte às promoções, até o momento em que o tribunal alcançasse a equidade, garantindo assim a igualdade de gênero na sua dimensão substantiva e não meramente formal.

Não há consenso com relação à temática, que tem suscitado discussões, dentro e fora dos tribunais, do Oiapoque ao Chuí. Tal circunstância não causa estranheza. Considerando que a primeira mulher magistrada, Auri Moura Costa, foi nomeada apenas em 1939, no Tribunal de Justiça do Ceará, e que o Brasil guarda um registro de mais de 400 anos de presença unicamente masculina no Poder Judiciário, já que as primeiras comarcas brasileiras foram estruturadas no século 16, é natural que o tema soe indigesto para alguns. No entanto, as conquistas femininas sempre foram feitas com sangue, suor e lágrimas. Nenhuma delas aportou graciosamente às nossas portas. Conforta saber que ao lado das mulheres sempre estiveram homens conscientes, com espírito democrático e suficientemente corajosos para suportarem as críticas de seus pares.

É inquestionável o relevante papel desempenhado pelo Poder Judiciário, que, justamente em razão da sua importância, precisa ser cada vez mais representativo e espelhar a sociedade para a qual a jurisdição é prestada, a fim de que todas, todos e todes percebam que serão julgados de forma isenta, democrática e igualitária. A circunstância de termos, no Brasil, essa maioria de cortes formadas exclusivamente ou quase que exclusivamente por homens brancos precisa ser problematizada. O universo do direito, embora tenha sido construído sob uma perspectiva androcêntrica, comporta, atualmente, a coexistência de complexidades que estão para muito além da reduzida perspectiva de justiça de uma parcela da população.

Medidas que são aparentemente neutras merecem ser seriamente questionadas e revistas, como já ocorreu ao longo da história. Um dos melhores exemplos é o das sufragistas, movimento que reivindicava a participação ativa das mulheres nas eleições e que era violentamente combatido sob a alegação de que o domínio da política deveria remanescer nas mãos dos homens pois elas eram tidas, na época, como incapazes de atuar naquele meio.

Vê-se, então, que apenas apontar desigualdades formais não tem se mostrado uma estratégia capaz de promover equidade na maior parte das cortes do país. O Estado tem o dever constitucional de combatê-las, sob pena de estar-se diante de uma mera legalidade aparente, que perpetua o status quo e é incapaz de promover a igualdade substantiva, almejada no Estado Democrático de Direito.

Josiane Caleffi Estivalet - Juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e representante do Movimento Paridade no Judiciário

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