Silvestre Gorgulho - Ex-secretário de Estado de Comunicação e de Cultura de Brasília
O cirurgião Roland Montenegro deixou, além da saudade, muitas lições de vida. Três delas estão incrustadas na minha alma. A primeira é que a profissão médica não é profissão, é vocação. Ele colocava o atendimento acima de tudo.
Acima da própria família e, inclusive, de si mesmo. Aprendi com ele que a medicina trata. Mas quem salva é o profissional humano, vigilante, dedicado, fraterno e competente. Roland envolviase com os pacientes de uma forma incrível. Fazia questão de conhecer a vida deles, os seus sonhos e, até, a rotina de cada um. Era parte do tratamento, confessou a um amigo comum, jornalista João Bosco Rabelo. Roland tornou-se amigo e confidente de cada colega de trabalho e de cada paciente, o
que explica a repercussão imensa de sua partida.
Por fim, Roland Montenegro gostava de viajar. Profissionalmente, para acompanhar a evolução da medicina, em congressos por este mundo afora. E, como terapia, viajava para assistir a shows de orquestras e musicais importantes, como também para pesca esportiva, aquela que devolve o peixe ao seu habitat, motivo de sua última viagem nesse sábado, dia 16, que num acidente aéreo em Barcelos-AM, acabou roubando-lhe a vida aos 70 anos — completaria 71 no próximo dia primeiro de outubro — e de outras 13 pessoas.
Roland Montenegro era assim: conhecia todas as teorias, dominava os melhores procedimentos de intervenções cirúrgicas. Sua dedicação à medicina e suas habilidades o conduziram a desenvolver uma nova técnica para cirurgia no pâncreas, conhecida por levar seu nome: Método Montenegro. Essa técnica para anastomose pancreato gástrica, descrita em 2005, foi apresentada e referendada no Congresso Europeu da Sociedade Internacional de Cirurgia Hepato -Pancreatobiliar, em Heidelberg, na Alemanha.
Sua dedicação, desde sempre, à medicina, o levou a ser o pioneiro no transplante de fígado em Brasília. Era um ser humano que transmitia amizade, confiança e consciência de sua missão como médico. Ao atender um paciente e ao tocar uma alma humana, ele se comportava como outra alma humana. Roland Montenegro era de outro tempo.
Por dois anos, entre 1991 a 1993, Roland Montenegro trabalhou em Pittsburgh, na Pensilvânia, no maior centro de transplante multiorgânico dos Estados Unidos. Ali, concluiu o treinamento em transplante hepático. Em 1994, retornou ao Brasil. Ficou lotado na Unidade de Cirurgia Geral do Hospital de Base de Brasília. Dedicação total ao acompanhamento dos jovens médicos recém-formados que lá chegavam para a residência médica. Formou centenas de cirurgiões brasilienses. Voltou aos Estados Unidos, em 1997, para um estágio no Departamento de Cirurgia de Fígado, Vias biliares e Pâncreas da Universidade do Sul da Califórnia.
Todo paciente tem uma história boa de contar. E todo médico tem muitas histórias para contar. Roland era imbatível em casos que vivenciou nos 45 anos de profissão. Casos de família, casos de pacientes e casos com colegas médicos. E não são histórias de pescador. Um dia, ao chegar ao seu consultório, deparei-me com um quadro que continha uma carta de George W. Bush.
— Olha só, uma carta do presidente dos Estados Unidos? E carta de agradecimento!
— Pois é — respondeu Roland com humildade
—, sou contratado pela Embaixada dos Estados Unidos para ficar com minha equipe de plantão, em Brasília, toda vez que chega aqui uma alta autoridade norte-americana. Em 2005, o presidente Bush esteve aqui e eu cumpri o meu dever. Dias depois, recebo dele essa carta, que me honra muito.
Outra história: uma tarde, Roland foi à minha casa levar uma cerveja legítima da Bavária, enviada pelo seu filho que mora na Alemanha. Sentamos na varanda para beber. Logo toca seu celular. Ele olhou, não tinha identificação. Mas atendeu. Era um médico que ligou do centro cirúrgico do hospital de Cascavel, no Paraná, para tirar dúvidas sobre um procedimento que fazia no pâncreas de um paciente. Em mais de meia
hora de conversa, o autor do Método Montenegro orientou a cirurgia e conduziu com sucesso uma intervenção que tinha tudo para dar errado. Mais uma vida salva.
Roland sempre falava com emoção de sua companheira Luci Montenegro. Enfermeira recém-aposentada, Luci compartilhava com ele as viagens de trabalho e para assistir a musicais, especialmente os maestros de sua preferência, como o indiano Zubin Mehta e Herbert von Karajan.
Dizia que muitos médicos sacrificam a família pela medicina. Contava, com pesar, que teve de se ausentar da formatura solene da filha Milena por um chamado urgente do hospital. Um paciente estava em crise. Abandonou a formatura da filha para salvar mais uma vida. Tinha ainda os casos das cirurgias inéditas e
salvadoras, pacientes folclóricos e até atendimentos inusitados de colegas médicos. Os casos eram tantos que pensava em escrever um livro. Não deu tempo. Uma pescaria o levou precocemente. O amanhã tem uma extrema mania de ser tarde demais.
Obrigado, Roland Montenegro, pelo seu legado.