JORGE JABER, psiquiatra especializado em tratamento de dependência química, associado da International Society of Addiction Medicine e da World Federation Against Drugs (WFAD)
Apaixonante, foco de acalorados debates e de pontos de vista diversos, a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio está em avaliação no Supremo Tribunal Federal. Pautado em 2011, o processo levou mais de uma década em análise e segue sendo alvo de fortes embates. É preciso frisar que o que está sob avaliação na mais alta corte brasileira é restrito e bastante específico. Pela lei a ser votada, a produção e venda continuam proibidas. Apenas o porte, em pequena quantidade, poderá vir a ser tolerado.
Diante deste debate é preciso que levantemos alguns pontos de reflexão. Em relação ao aspecto econômico, a descriminalização provoca mudanças no sistema de distribuição das drogas e cria um mercado formal, como já ocorre em alguns países. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a legalização nos Estados Unidos, por exemplo, aumentou a receita tributária e, em geral, reduziu as taxas de prisão pela posse da substância. Essa abordagem jurídico-social é outro viés fundamental quando se constata que as prisões brasileiras estão lotadas de pessoas envolvidas com o consumo de drogas, mas não necessariamente criminosas.
A ideia é evitar que consumidores de drogas sejam condenados ao encarceramento em uma de nossas já abarrotadas prisões. Uma tragédia que precisa ser interrompida. De acordo com o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a população prisional no país possuía, no final de 2022, 832.295 pessoas, um número 257% maior do que o que havia sido registrado em 2000. A maior parte dos presos é negra (68,2%) e tem de 18 a 29 anos (43,1%). Isso cria uma população totalmente à margem da sociedade, abalando famílias e afastando estudantes e profissionais de suas atividades, com danos para a própria economia nacional.
Sob o viés da saúde pública, a descriminalização levanta certa inquietude. Estaremos diante, sem dúvida, de um estímulo ao consumo de substâncias consideradas leves, como a maconha. Num país em que o tabaco e o álcool fazem parte da rotina de inúmeros menores de idade, o uso recreativo da cannabis, já encarado com benevolência por diversos setores da sociedade, tenderá a crescer, afetando, em especial, a saúde de nossas crianças e jovens.
De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2022 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc)), houve um crescimento recorde no consumo de maconha entre adolescentes. Nos Estados Unidos, a legalização da cannabis pode estar levando ao aumento do uso de outras drogas, mais potentes, de acordo com levantamentos. E, como consequência, crescem os casos de distúrbios psiquiátricos e hospitalizações. A revisão de estudos recentes leva especialistas à confirmação de uma associação preocupante: além da relação entre uso da droga na adolescência e doenças mentais como esquizofrenia, depressão e ansiedade; em adultos, o uso da maconha nesta fase da vida aumenta a chance de importantes transtornos, além de suicídio, mais tarde.
Na faixa etária que envolve a adolescência e a juventude, com células ainda em formação, o efeito das substâncias químicas é mais intenso, principalmente sobre as funções cerebrais. Isso significa, nos casos mais graves, um sério comprometimento da capacidade cognitiva. O aumento do consumo trará consigo uma elevação no número de intoxicações e, consequentemente, da demanda por serviços de emergência.
É preciso criar uma rede de proteção para crianças e jovens, que estão mais suscetíveis à ação das substâncias químicas. Esta rede precisa levar em conta, especialmente, os jovens das classes menos favorecidas, que não têm acesso aos recursos de prevenção e tratamento e estão muito expostos à intoxicação e, consequentemente, ao adoecimento. Se não protegermos nossos jovens, estaremos contribuindo para a formação de uma multidão de brasileiros com sério comprometimento de sua capacidade produtiva.
O custo deste cenário é coletivo, e a missão de enfrentá-lo, idem. Aprimorando tanto o trabalho de prevenção quanto de atendimento, podemos nos antecipar aos riscos que a simples perspectiva de descriminalização do porte de tais substâncias pode nos apresentar.
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