MARCELO COUTINHO
Há uma verdadeira corrida ao hidrogênio verde no mundo, como futuro substituto do petróleo em uma diversa gama de setores da economia. Os Estados Unidos (EUA) estão roubando a cena com uma política de transição energética bastante arrojada. O governo americano está literalmente dando dinheiro para as empresas produzirem o H2V por lá, três dólares por cada kg de hidrogênio. Outros países ricos também estão bastante adiantados nessa corrida, criando já, dessa maneira, uma espécie de “guerra comercial do hidrogênio”, que deve legar aos países retardatários a partir de 2026 um sério gargalo global na cadeia de suprimentos do setor.
Na América do Sul, o Chile e a Colômbia estão bem à frente do Brasil nesse processo. E nos Brics, a Índia tomou a dianteira quando definiu formalmente o padrão do hidrogênio que será adotado no país, juntando-se com essa medida às demais nações que já estabelecem como limite aceito 2 kg de dióxido de carbono emitidos por cada quilo de hidrogênio fabricado. Esse limite de emissões padronizado vai se consolidando no mundo, o que ajuda a separar o tipo de hidrogênio que de fato será qualificado como commodity. Os investimentos seguirão, é claro, essa definição internacional, colocando recursos em projetos que se enquadrem. O hidrogênio genuinamente verde, isto é, eletrolítico e inorgânico, alimentado por fontes renováveis, cumpre com folga essas exigências da certificação internacional.
O H2V de base eólica não terá problemas em adquirir a certificação, já que emite menos de 1,8 kg de CO2 por quilo de H2 em toda a cadeia. Já o hidrogênio de biomassa terá muita dificuldade em se manter dentro do limite estabelecido internacionalmente. Mesmo o hidrogênio do etanol brasileiro, um etanol que é de ponta em matéria de eficiência, não consegue se manter dentro dos padrões internacionais no mercado de hidrogênio renovável com médias de 12 meses. O estudo da WWF mostra que cada quilo de hidrogênio do etanol emite 2,3Kg de CO2, ultrapassando assim o limite estabelecido no exterior. Vale notar que os europeus flexibilizaram sua política para aceitar até certo ponto o hidrogênio orgânico, com níveis maiores de emissão, mas sem igualá-lo ao hidrogênio verde, que continua tendo preferência comercial e definição clara a partir da eletrólise da água.
O hidrogênio de biomassa poderá ser comercializado dentro do Brasil, mas dificilmente conseguirá ser exportado por causa da certificação lá fora. Não à toa, os investidores internacionais concentram suas atenções no hidrogênio verde brasileiro. O marco legal no Brasil ainda não saiu. Está demorando justamente porque precisa encontrar um meio de incentivar a indústria do H2V sem ferir suscetibilidades do setor sucroalcooleiro e petrolífero. E a melhor forma de fazer isso será estabelecendo níveis de incentivos públicos diferenciados, colocando o H2V no topo das prioridades em matéria de redução tributária, debêntures incentivadas, crédito de carbono e aportes financeiros diretos. Afinal, o país já teve o Pro-álcool e programas de apoio aos biocombustíveis por muitos anos. Agora é a vez do hidrogênio verde.
Mesmo com a política agressiva observada em outros países, o hidrogênio eletrolítico brasileiro será altamente competitivo e ganhará mercados externos desde que se aprove um marco legal até no máximo novembro com as devidas distinções técnicas, pensando estrategicamente na certificação internacional. Ceder aos lobbies setoriais e misturar os hidrogênios na legislação, colocando junto coisas distintas, será contraproducente. Ademais, os efeitos de descarbonização do H2V serão impressionantes. Para se ter uma ideia, como um exemplo, a fábrica que será instalada em Icatu do Maranhão terá plena condição até 2043 de descarbonizar todas as emissões diretas da companhia Vale, algo em torno de 10 milhões de toneladas de CO2 ao ano, que serão totalmente limpos com o hidrogênio maranhense. Mais de 50% do consumo de energia e combustíveis da Vale ainda vêm do diesel, carvão e outros óleos poluentes. A empresa já decidiu inclusive substituir seus trens a diesel por locomotivas movidas a H2V.
Uma definição técnica de hidrogênio verde é a base para a certificação internacional, captação de investimentos e exportação. Não se pode perder nunca de vista o porquê da transição energética que é salvar a humanidade. Embora os números favoreçam cada vez mais a indústria do H2V, a discussão não se esgota em dinheiro. Nada descarboniza mais do que esse tipo específico de hidrogênio. Os demais ajudam, mas não com o mesmo potencial. Parte significativa da energia que a gaseificação de biomassa gera é usada para o seu próprio processamento. Além disso, esse método de produção de hidrogênio também emite carbono. E num nível que tende a aumentar à medida em que crescer seu consumo. Cerca de 1,2 bilhão de toneladas de CO2 emitido no Brasil por ano vem justamente de mudanças no uso da terra e florestas, ou seja, do desmatamento.
Nos últimos 20 anos, somente a cana de açúcar expandiu-se em 6,1 milhões de hectares, avançando sobre outras culturas, sobre a pecuária e também sobre a vegetação natural. Mais recentemente, por conta da proibição desse plantio na Amazônia, foi o etanol do milho que mais desmatou a floresta. Por sua vez, o desmatamento no cerrado em 2023 saiu do controle. Portanto, caso o hidrogênio do etanol tivesse que ser mais comercializado, é obvio que aumentaria também o desmatamento, e consequentemente as emissões de carbono, e consequentemente esse hidrogênio não receberia as certificações verdes internacionais.
Além disso, é bom lembrar que há estudos mostrando que o aquecimento global bloqueia progressivamente a fotossíntese, logo prejudica a reabsorção de carbono pelas plantas, que já não é completa. No que diz respeito ao hidrogênio de resíduos urbanos, além de os biodigestores também precipitarem em até 2 anos as emissões e produzirem substâncias tóxicas e cancerígenas, atenderiam uma parte menor da demanda por descarbonização. A solução principal é mesmo, portanto, o hidrogênio verde, eletrolítico e inorgânico.
Os demais podem receber o nome que quiserem, renovável ou de baixo carbono, mas não são verdes. O aquecimento do planeta está batendo recorde atrás de recorde, anunciando um colapso climático que certamente levará a um colapso social nas próximas décadas. Não dá mais para ninguém se enganar com falsas ideias motivadas por interesses econômicos egoístas. É hora de pensar no que de fato vai resolver o crescente e preocupante problema das mudanças climáticas, e ainda por cima reindustrializar o país.
MARCELO COUTINHO, analista de hidrogênio e professor doutor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
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