SEVERINO RAMOS FERREIRA FILHO
Matheus, um aluno negro com os olhos marejados, atento a tudo que eu falava e muito participativo, chamou-me a atenção logo no primeiro dia de aula de uma turma do curso de publicidade e propaganda da Faculdade Paulista de Comunicação. No término da aula, ele se aproximou e disse: Posso te dar um abraço? Sim, respondi! E me preparei para um simples abraço fraterno, mas percebi que era um abraço diferente com uma carga muito grande de carinho e admiração. Em seguida ele se afastou um pouco e apontando para o meu peito disse: "Venho da escola pública e o senhor é o meu primeiro professor negro". Desde então, decidi redobrar os cuidados com minha postura, entendi que, além de professor, eu era uma referência e entender o poder e o papel da representatividade negra passou a ser minha busca constante.
Fiz então como o professor Sherman — vivido por Eddie Murphy no filme O professor aloprado — e coloquei-me como parte desse experimento. O primeiro passo era saber quais foram as minhas referências para ser um professor da área da comunicação. Lembrei que sou de uma geração apaixonada por televisão. Em minha infância, era o aparelho mais tecnológico e mágico que existia. No comecinho dos anos 1970 meu pai comprou uma TV Telefunken, parcelada em muitas prestações. Era linda, com caixa em madeira, antena interna e estabilizador de voltagem. A imagem era preta e branca, mas era o suficiente para eu sair da escola correndo, almoçar e, em seguida, assistir à toda programação da TV Globo, que ia do programa infantil Vila Sésamo até a novela das 22h, O Bem-Amado. Sempre eu me imaginei apresentando o Jornal Nacional ou atuando numa novela.
Porém, bem cedo, percebi que aos negros eram destinados papeis estereotipados de escravizados, bandidos, malandros. Isso tornava meu sonho cada vez mais distante, principalmente após saber que na novela A cabana do pai Thomas — adaptação de um romance histórico dos Estados Unidos — o papel principal do negro abolicionista Thomas foi dado para o ator branco Sergio Cardoso. Para assumir a personagem, ele usava peruca crespa, colocava rolhas no nariz e pintava a pele de preto. O seriado infantil Sítio do Picapau amarelo foi escrito pelo eugenista Monteiro Lobato, que, em 1927, teve seu romance O Presidente Negro recusado pelos editores americanos por ser demasiadamente racista. Encontrei as referências que buscava em histórias de superação dos filmes americanos como O grande desafio ou Homens de honra entre outros.
Mas tornar-me professor aconteceu nos anos de 1970 ao assistir ao filme Ao mestre com carinho. Nesse filme, Mark Thackeray (Sidney Poitier) é um engenheiro que ficou desempregado e resolveu dar aulas em Londres para um grupo de adolescentes rebeldes que, ao serem tratados com respeito, abandonam o comportamento hostil e se afeiçoam ao mestre. A representatividade negra é importante em todas as áreas: nas artes, nos esportes, nos negócios, na fé e, principalmente, na política, em que as nossas pautas são usadas como trampolim eleitoral pelos mesmos políticos brancos de sempre. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,1% dos brasileiros se declaram negros. Mas são poucos os que ocupam cargos de decisão.
Em 2019, durante a pandemia alguns empresários negros reuniram-se no grupo Economia Negra, no Facebook, e o seguinte questionamento veio à tona: "Onde estão os políticos negros que ocupam cargos por indicação no Brasil?" E, surpreendentemente, nenhum deles foi encontrado na prefeitura e no governo de São Paulo nem na maioria dos estados. Esse resultado foi decisivo para o nascimento do “Raízes 88” — o primeiro partido antirracista do Brasil, com paridade de gênero e que tem como objetivo o protagonismo do negro e do indígena na política. Hoje, estamos presentes em 12 estados. Em maio passado, fizemos a nossa assembleia de fundação e, muito em breve, vamos registrar o nosso estatuto. Concordo plenamente com Santo Agostinho, um dos expoentes africanos do cristianismo: "A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-la".
SEVERINO RAMOS FERREIRA FILHO, especialista em marketing, mestre em comunicação, professor da Faculdade Paulista de Comunicação, diretor do Instituto Social Afro Brasileiro
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