CRISTOVAM BUARQUE
Os gregos chamavam de paideia a educação que seus cidadãos recebiam desde a infância para formar a mente de seu povo. A paideia brasileira forma nossas mentes para se acostumarem e conviver com a desigualdade social e para não perceberem que ela decorre da inequidade como a qualidade da escola é distribuída, conforme a classe social do brasileiro. O paradoxo da brasilidade é que para eliminar a brutal desigualdade social é preciso oferecer educação com a mesma qualidade para todos: implantar em todo o país um sistema único público. Para tanto, será necessário mudar o sentimento geral de aceitação da desigualdade que dribla as leis que tentam superá-la.
Quando, no século 19, o avanço técnico forçou a política a aceitar a Lei do Ventre Livre, a cultura entranhada foi mais forte do que a lei: negou escola aos recém nascidos. O filho da escrava foi solto, mas não libertado, por não dispor de mapa que lhe permitisse escolher um destino e conhecer o caminho. A falta da escola impôs uma algema invisível que driblou a lei. Anos depois, a Lei Áurea soltou os escravos, mas outra vez, negou-se escola para eles. Ficaram soltos, não livres. Ficou ilegal vendê-los ou compra-los. Mas, por falta de escolaridade, até hoje seus descendentes sociais se oferecem à escravidão moderna nas esquinas das cidades.
Foi preciso esperar até o século 21 para a política assegurar o direito à matrícula para todos, mas em escolas com qualidade diferente, implantando um sistema com “escolas senzala” e “escolas casa grande”. Porque matrícula não significa frequência todos os dias, nem assistência ao longo do dia; não representa permanência até o final da educação de base, o que não é sinônimo de aprendizado para formar o aluno no entendimento do mundo contemporâneo, dando-lhe o mapa necessário para facilitar sua busca de felicidade pessoal e para construir um país melhor e mais belo. Da mesma maneira que “soltar” não é “libertar”, “matricular” não é “ensinar”, e ensinar não é aprender. O resultado é que quase todos já se matriculam, mas poucos são alfabetizados plenamente para a contemporaneidade.
A lei da Abolição foi corrompida pela última trincheira da escravidão: a desigualdade da educação conforme a renda e o endereço da criança. Essa realidade social é aceita com naturalidade, inclusive pelos políticos progressistas. Até hoje, os descendentes sociais dos escravos levam algemas sociais inivisíveis, e os militantes de esquerda usam algemas ideológicas invisíveis, vindas de um mundo passado e de teorias importadas.
As forças de esquerda defendem distribuição de terra e aumento de salários, mas não defendem para o filho do trabalhador escola igual à escola do filho do patrão. Os movimentos negros defendem cotas para os que concluíram o ensino médio ingressarem no ensino superior, mas não lutam pela erradicação do analfabetismo, nem pela igualdade na qualidade da educação de base, independentemente da renda, da raça e do endereço do aluno. Promovem alforrias para alguns, não a abolição para todos.
O pensamento progressista brasileiro acredita que é preciso igualdade social para assegurar educação de qualidade para todos, e não o contrário: a igualdade na qualidade educacional é uma condição preliminar para a quebra da desigualdade social. Defende a distribuição de renda para melhorar educação, mas se recusa a entender que a educação de qualidade para todos é o caminho para distribuir renda: não defende que o Brasil implante um sistema nacional único público de educação de base sem desigualdade na qualidade. Nossa esquerda foi formada na paideia brasileira, e seus lideres e famílias são beneficiários da desigualdade educacional. Por isso defendem estatizar bancos e indústrias mas aceitam a privatização do ensino. Não defendem fazer público todo sistema educacional com a mesma qualidade.
No tempo da escravidão, a negação de escola era indecente, agora ela é também estúpida, obscena na moral e obtusa na lógica. Porque além de ser a ferramenta para quebrar a desigualdade, é também o vetor da eficiência, da inventividade, da competitividade que a economia moderna requer, e o caminho para distribuir o resultado obtido. Mas isso não é percebido pelo pensamento progressista aprisionado também por uma algema ideológica. Este é o problema central do Brasil: a formação, ao longo de séculos, de uma mente nacional educada naturalmente para aceitar a desigualdade social e para não entender que a fábrica da iniquidade está na desigualdade escolar.
CRISTOVAM BUARQUE, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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