RICARDO NOGUEIRA VIANA
Em 15 de agosto, o Brasil se despediu da atriz Léa Garcia. Aos 90 anos, a intérprete se tornou ícone do teatro, da televisão, do cinema, e também um referencial aos afrodescendentes na luta por afirmação e igualdade. Léa estava prestes a receber o Troféu Oscarito, no Festival de Gramado, quando sofreu um infarto antes da premiação, vindo a falecer. Mulher, negra, a atriz estreou no palco em 1952 na peça Rapsódia Negra, escrita e dirigida por seu então companheiro o dramaturgo e ativista Abdias Nascimento. Em 1957, Léa foi internacionalmente conhecida ao ser indicada ao prêmio de melhor interpretação no Festival de Cannes por sua atuação no filme Orfeu Negro.
Mas foi em 1977 que a intérprete ganhou notoriedade após incorporar a personagem Rosa na novela Escrava Isaura, um romance adaptado por Gilberto Braga, por meio do livro escrito por Bernardo Guimarães, em 1875. A telenovela teve sua transmissão comercializada para dezenas de países. Rosa era uma escrava, vilã, e há relatos da própria atriz de ter sido agredida na rua após a realização do papel. O enredo fazia menção ao século 19, no Brasil do Império, às vésperas da abolição. Havia a casa grande, a senzala, as torturas e as mortes, um retrato de um Brasil escravocrata em que negros construíam riquezas e sofriam violações às suas dignidades. Mas o mais surpreendente, Isaura, a escrava e então protagonista da narrativa representada pela atriz Lucélia Santos, era branca. Isso mesmo, uma escrava que não era afrodescendente, totalmente fora do contexto do que vivíamos.
Ainda criança, eu também não gostava da Rosa. O processo de inculcação de valores, supremacia e hierarquia racial que a mídia e a sociedade faziam em mim, uma criança negra, e nos demais descendentes de escravos, era covarde e funesto. Era o racismo mantendo a sua estrutura, ou seja, cada um no seu devido lugar. Dê ao branco o que é de branco e ao negro o que sobrar. Será que diante de tanta violência sofrida em uma senzala, a história não nos permitiria ter uma protagonista negra?
Na mesma época, o mesmo canal televisivo me oferecia assistir ao programa, o Sítio do Picapau Amarelo. Uma obra do racista e eugenista Monteiro Lobato. Também era difícil entender como um homem oriundo de uma espiga de milho, o Visconde de Sabugosa, era culto e inteligente, enquanto a empregada, a negra Tia Nastácia, falava errado e não sabia ler tampouco escrever. O mesmo se dizia dos pretos, Malazarte e Tio Barnabé, enquanto Dona Benta contava contos de histórias aos seus descendentes, Pedrinho e Narizinho, todos brancos.
Se hoje enxergamos o preconceito racial no Brasil e uma diferença abissal entre negros e brancos, abre-se um parêntese para se falar das mulheres negras. Àquelas que se evidenciam diante das cifras indignas: são as que mais sofrem com a violência doméstica, com os baixos salários, com o sistema de saúde deficitário, com a insegurança alimentar e ocupam o mercado informal. Se a escravidão em sentido formal teve o seu termo, ainda continuamos respirando as suas amarras. Citando as palavras do Professor Cristovam Buarque no seu livro A Última Trincheira da Escravidão: “a Lei Áurea soltou os escravos, mas não os libertou, porque não lhes deu o mapa para caminharem em liberdade”.
Apesar da tristeza pelo seu falecimento, hoje, glorifico e reverencio Léa Garcia, Rosa e tantas outras personagens incorporados pela atriz. Ela sabia o que fazia e ocupou com dignidade o seu lugar de fala. Foi com sua postura e os seus papéis que pudemos ser vistos e avançamos em nossas conquistas. O Brasil do século 19 não é o mesmo dos anos 1970 e também não é o atual, mas para a negritude direitos e garantias andaram a passos letárgicos.
Negros, ou seja, pretos e pardos, somam 56% da população brasileira. Uma fatia majoritária da nação que foi impulsionada por Léa, Zezé Mota e tantas outras personalidades anônimas que sangraram para que aqui chegássemos. Dessas, eclodiu uma geração negra, empoderada, consciente e sedenta por conquistas e saberes. A partir de Léa, outras artistas cênicas como Sharon Menezes, Thaís Araújo e Clara Moneke fincaram suas balizas e edificam mulheres negras como protagonistas, não em um Brasil sem preconceitos, mais em um país que clama por igualdade de oportunidades entre os desiguais. Apesar das conquistas, a música tema da novela Escrava Isaura com a letra de Dorival Caymmi até hoje é atual: “Vida de negro é difícil, é difícil como quê, lerê, lerê...,”.
RICARDO NOGUEIRA VIANA, delegado chefe da 35ª DP e professor de educação física