As cruzes flamejantes continuam a arder em corações vazios e em mentes escondidas sob os capuzes do ódio. A fumaça que se esvai, misturada ao odor intenso de carne queimada, é a mesma que habita a consciência inconsciente de tantos. Ainda vejo filas de gente transformada em ossos. O semblante de sofrimento esconde um passado tão distante, que foi sepultado pelo horror. Corpos empilhados como lixo, descartados em uma vala coletiva qualquer. Até mesmo na morte roubaram-lhes o que lhe restava de dignidade.
Em uma árvore do sul dos Estados Unidos, enquanto o crucifixo queima, um homem negro, pendurado a uma corda, nem teve tempo de se despedir da vida. Não pôde abraçar a filhinha, nem beijar a esposa pela última vez. O direito de respirar, de sorrir e de sonhar lhe foi roubado por quem se julga superior. Apenas pela cor da pele. Há 55 anos, racistas calavam, à bala, uma voz poderosa que gritava contra décadas de horror. Se vivesse na época atual, Martin Luther King Jr. teria vergonha da humanidade. Com certeza, estaria lutando contra o preconceito e a discriminação racial.
Eu me recordo de Yad Vashem. Todos que tiverem a oportunidade de passar por Jerusalém precisam inclui-lo no roteiro. O Memorial do Holocausto é um soco no estômago. Estive lá em março passado. Impossível não sair dali comovido, em lágrimas, envergonhado pelo ponto em que a humanidade desceu e deixou se compurscar pelo mal e pelo sadismo. Uma jornada rumo à insensatez e à intolerância.
A anulação cultural dos judeus, o confinamento nos guetos, o transporte até os campos de extermínio como se fossem gado, o assassinato em massa. Ao ver os uniformes listrados de Auschwitz, expostos na vitrine, é como enxergar homens, mulheres e crianças suplicando por socorro. Hoje, espectros e memórias de tempos de horror. Ao ingressar no Yad Vashem, o visitante percorre um corredor que se afunila e segue em declive. Cada sala anexa conta um pouco do terror enfrentado pelos judeus. Até que o corredor volta a se alargar, as paredes ganham forma de asas e um vale arborizado e repleto de passarinhos se desvela ante o olhar perplexo.
Ainda hoje, o mesmo ódio, a mesma intolerância contaminam a sociedade. É a menina pobre atingida por uma bala perdida disparada pela polícia, na favela. O homem negro torturado no supermercado, acusado de roubo. O motorista de Uber atingido por uma cusparada da mulher branca. A doméstica, alvo de olhares tortos ao usar o elevador social. O dono do restaurante, negro, "confundido" com o garçom. Pretensos "líderes" que usam o termo "arroba" ao se referirem ao peso de um negro. As cruzes flamejantes ainda ardem. A fumaça ainda se esvai da humanidade.
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