CLÁUDIA BUZZETTE CALAIS
A agenda do combate à fome deve ocupar posição de destaque nos principais fóruns políticos e econômicos mundiais pelas próximas décadas. O motivo é simples: precisamos equacionar o desafio do aumento da produção de alimentos no mundo, versus o aumento da desigualdade social e, por consequência, da falta de acesso de grande parte da população a esses alimentos. O aumento da produção de alimentos não pode ser proporcional ao aumento da fome. A lógica deveria ser oposta ao que estamos assistindo atualmente.
A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que cerca de 2,4 bilhões de pessoas enfrentam algum grau de insegurança alimentar – isto é, passam fome de fato ou não têm garantidas suas próximas refeições. O dado é referente a 2022 e mede, portanto, o impacto da pandemia. Hoje, com o abrandamento da crise sanitária, o planeta se vê diante de um duplo desafio: não apenas reduzir essas taxas elevadas de insegurança alimentar, como também promover cadeias produtivas mais sustentáveis, assegurando que a humanidade não mergulhará em uma crise de escassez ou má distribuição de alimentos ainda mais profunda.
Esse debate deveria ser prioritário no Brasil, pois também estamos assistindo ao aumento das taxas de insegurança alimentar. Segundo relatório da própria ONU, cerca de 10,1 milhões de brasileiros passaram fome no período de 2020 a 2022. Apesar de ter havido uma redução em relação a anos anteriores, o percentual de pessoas que sofrem insegurança alimentar no país atingiu 70,3 milhões de pessoas, o que corresponde a um terço da nossa população. Segundo relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Pensann), o Brasil tinha em 2022 mais da metade da sua população, 125 milhões de pessoas, sofrendo com algum grau de insegurança alimentar. Destas, cerca de 33 milhões passavam fome.
A extensão territorial brasileira, a pujança do nosso setor agropecuário, a qualidade de nossa produção acadêmica e a riqueza da nossa biodiversidade garantem espaço privilegiado ao Brasil no debate global sobre a insegurança alimentar. Mais do que sócio do problema, nosso país é parte da solução.
Aqui é preciso atentar para o caráter multifacetado do assunto. Não há “bala de prata” que dê conta desse problema em toda a sua complexidade. Um bom começo seria ampliar o investimento do país em ciência, pois das nossas universidades e centros de pesquisa, que já gozam de prestígio internacional, sairão as tecnologias necessárias para construirmos uma lavoura mais sustentável, mais resiliente às mudanças climáticas que já estão em marcha, como a redução na quantidade de chuvas em certas regiões do país ou o aumento da amplitude térmica anual. A ciência poderá nos indicar novas tecnologias que nos auxiliem a reduzir o desperdício de alimentos no transporte ou tornar nossos centros de distribuição de mais eficientes fazendo com que os produtos cheguem com melhor qualidade e preços mais acessíveis.
Esse tipo de esforço precisa estar conectado também aos circuitos econômicos regionais, respeitando suas especificidades com atenção a regionalização de alimentos. Quando investimos em produtos regionais, desenvolvemos novas cadeias e ampliamos o acesso da população a produtos de maior qualidade, por exemplo. Enquanto o agrobusiness se dedica prioritariamente a “grãos globais” como a soja, é a agricultura de pequeno porte ou familiar que assegura a maior parte da oferta de alimentos que chegam à nossa mesa. Esses agricultores também precisam ter acesso a informação, tecnologias e financiamentos. Combater a fome é mais do que garantir que cada indivíduo tenha acesso a uma certa quantidade de calorias diárias. É permitir que as pessoas tenham acesso também a alimentos saudáveis e que façam parte de sua identidade cultural.
Além disso, é preciso encarar o polo da demanda, isto é, as condições concretas que a população tem de comprar sua comida. A cada dia, fica ainda mais evidente a complexidade do desafio da insegurança alimentar e como ela está diretamente conectada com a desigualdade que também tem aumentado no mundo.
A situação do Brasil é muito promissora. A afirmação pode parecer estranha quando olhamos para esse conjunto de desafios, mas, à diferença da maioria dos países, incluindo vários do mundo desenvolvido, o Brasil tem enormes potencialidades a serem exploradas, seja por conta de suas reservas naturais e da competitividade do seu agronegócio, seja pelas possibilidades de crescimento econômico e redução de desigualdades que são caras a um país emergente.
O Brasil está equipado como poucos para enfrentar o problema da insegurança alimentar. Se soubermos aproveitar essa oportunidade histórica, articulando ações dos setores público e privado em prol de objetivos comuns, podemos liderar o combate à fome em escala global. E pensando nesses desafios, que a edição deste ano do Prêmio Fundação Bunge elegeu como tema da área de ciências humanas e sociais Conhecimentos e Estratégias contra a Fome e vai homenagear duas personalidades com trabalhos relevantes nessa temática.
CLÁUDIA BUZZETTE CALAIS, diretora-executiva da Fundação Bunge